“A Obstetrícia sempre me preencheu e adoro o meu trabalho”

Lúcia Leite é enfermeira, especialista em Saúde Materna e Obstétrica, e Presidente da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros. É mãe de três filhos e explica que é, cada vez mais, importante que as mulheres sejam preparadas para tomar decisões sobre o parto.

Lúcia Leite, Enfermeira e Presidente da ASPE

Gostaríamos de começar por conhecer o seu percurso. Quando é que surgiu o interesse pela área da enfermagem e por que motivo decidiu especializar-se em Saúde Materna e Obstétrica?

O meu interesse pela enfermagem começou muito cedo e ingressei nesse curso, antes de fazer 18 anos. Naquela altura, não tinha uma ideia clara do que era ser enfermeiro. Felizmente, tinha tido, até então, uma vida saudável, assim como a minha família e, por esse motivo, não estabeleci muito contacto com os serviços de saúde. No entanto, sabia que queria trabalhar nesta área e consegui entrar em Enfermagem, mas só percebi aquilo que realmente gostava na profissão, quando comecei a exercer. O curso é repleto de experiências e fazemos vários ensinos clínicos que nos permitem estar em contacto com a profissão.

A especialização em Saúde Materna e Obstétrica surgiu de forma engraçada, de certo modo. Eu inscrevi-me fora de prazo, depois do nascimento do meu filho mais velho e, quando entrei no curso, ele tinha nove meses, tendo feito o curso enquanto trabalhava e estudava, em simultâneo. Escolhi a Saúde Materna e Obstétrica depois de ser mãe, de ter percebido melhor esta área e, sobretudo, depois de entender que gostava da minha autonomia, enquanto enfermeira. Estar no sector da saúde permite-nos trabalhar sem sermos dependentes de outras pessoas. A assistência à mulher, a forma como organizamos os cuidados e como atendemos a grávida e, no fundo, a filosofia assistencial que suporta as práticas, depende muito das convicções e caráter de cada profissional. Por essa razão, a Obstetrícia sempre me preencheu e adoro o meu trabalho.

 

Tendo em conta que, ultimamente, têm sido noticiados vários casos de violência obstétrica, considera que é, cada vez mais, importante “humanizar” o parto? O facto de ser mulher e enfermeira, faz com que tenha uma maior sensibilidade para esta questão?

Eu penso que o que está em causa, neste aspeto, são os princípios e as crenças que cada um tem, em relação ao parto. A saúde em Portugal é muito paternalista, no sentido em que, apesar de, legalmente, o cidadão estar no centro dos cuidados, na prática, as pessoas tendem a pensar que o médico ou o enfermeiro é que sabe o que é melhor para elas. Ainda não conseguimos pensar que, num parto, por exemplo, os profissionais de saúde é que são os elementos “estranhos”, neste processo fisiológico. Cada vez há mais casos em que se diminui o direito da mulher ou do casal, de tomarem decisões. A gravidez é um processo natural e não é nenhuma doença. Se não vivêssemos em serviços saúde tão controladores, os casais podiam decidir de que escolhas fazer para terem uma experiência de parto positiva. Atualmente, existem evidências científicas que nos mostram que as intervenções desnecessárias no parto causam muito mais riscos do que se o processo decorrer naturalmente, apenas com uma monotorização profissional. O papel de um enfermeiro especialista ou de um obstetra é garantir que o processo decorre dentro da normalidade e apenas atuar quando é estritamente necessário

Acredito estar  mais sensibilizada para este assunto, não  apenas por ser mulher e enfermeira, mas, sobretudo, por ser mãe. Sou mãe de três filhos, nascidos por parto normal, sem epidural e sem grandes intervenções. Era isso que queria para o nascimento dos meus filhos e para mim. Considero que as mulheres devem ser preparadas para tomarem as suas próprias decisões, no que diz respeito a esta questão.

Enquanto Presidente da ASPE, acredita que é cada vez mais importante ter mulheres a assumir cargos de liderança? Quais as suas mais-valias para associações como esta?

Sim, sem dúvida. Eu penso que as mulheres são mais ponderadas e têm a capacidade de gerir várias coisas ao mesmo tempo. Normalmente, são mais humanistas, na medida em que se preocupam com o bem-estar do outro. Mas o facto de as mulheres não terem tanta facilidade em atingir cargos de liderança, não se deve apenas às limitações do mercado de trabalho. O problema está relacionado com a necessidade de mudança da mentalidade e comportamento delas. Eu já liderei vários processos e candidaturas e sei que quando oferecia um cargo importante a um homem, este nunca dizia que não estava preparado para o assumir. Isso acontece muitas vezes com a mulher. E depois há a questão da maternidade. Quando nasce um filho, a sociedade assume que é a mãe que deve ficar de licença parental e cuidar do bebé, e não o pai. Eu própria já me senti julgada, em situações nas quais me faziam sentir que estava a abandonar os meus filhos por estar a trabalhar. Essa pressão não é feita aos homens, é uma questão ainda muito enraizada culturalmente e de mentalidade.

 

Na sua opinião, os enfermeiros têm vindo a ser, constantemente, prejudicados e esquecidos, no que respeita à progressão e valorização salarial?

Há 15 anos que os enfermeiros têm sido sucessivamente prejudicados e o sindicalismo tradicional contribuiu muito para isso. O sindicalismo tem de mudar, tem que se manter totalmente independente dos interesses político-partidários. Foi também por esse motivo que decidi criar a ASPE. Os sindicatos são fundamentais para regular as condições de trabalho e só os sindicatos fortes conseguem fazê-lo.

É importante que a sociedade perceba que hoje os desafios para as empresas e para os sindicatos são outros!A retenção e a satisfação dos profissionais são aspetos essenciais. Hoje, o mercado de trabalho está refém de uma nova geração que tem outras prioridades e o trabalho não é uma delas!. Para os enfermeiros, a revolução que  precisam deve ser feita dentro da classe. Eles gostam muito do que fazem e preocupam-se com os seus doentes, mas há algo que têm de fazer rapidamente, que é mudar o seu comportamento. Têm de dar valor a si próprios e usar as suas competências a seu favor. Quando o fizerem, vão ser bem pagos.

 

Numa fase em que nos aproximamos do final do ano, gostaria de deixar uma mensagem de esperança e apoio aos enfermeiros?

Gostava de deixar um apelo aos enfermeiros, para que reconheçam o valor que têm. O que mais desejo, neste momento, é que estes consigam ganhar a coragem e a confiança necessárias para traçar o seu caminho. Espero que 2023 seja o ano em que os enfermeiros se empoderam.

 

Perfil

Lúcia Leite, é fundadora da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros e, atualmente, preside à Direção e ao Conselho Nacional da ASPE. Também exerce como Enfermeira Especialista no Núcleo de Partos do Centro Hospitalar Entre Douro e Vouga, EPE.

Exerce Enfermagem desde dezembro de 1984, tendo concluído o Curso Geral de Enfermagem na Escola Enfermagem de Dona Ana Guedes.

Concluiu o Curso de Especialização em Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica, na Escola Superior de Enfermagem Cidade do Porto, em dezembro de 1990, e exerce a especialidade desde essa data. Licenciada em Enfermagem a 6 de março de 2001 pela Escola Superior de Enfermagem S. João no Porto, atual Escola Superior de Enfermagem do Porto.

Entre 2004-2007, foi Presidente da Comissão de Especialidade em Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica e, por inerência, vogal do Conselho de Enfermagem da Ordem dos Enfermeiros.

Liderou o Projeto, apoiado pelo Ministério da Saúde – “Pelo Direito ao parto normal: uma visão partilhada”, entre 2008-2010. Este culminou na assinatura de um consenso nacional sobre conceito, princípios e práticas promotoras do parto normal, entre os grupos profissionais diretamente envolvidos na assistência ao parto (médicos obstetras e enfermeiros especialistas SMO), utilizando uma metodologia que incluiu a participação do cidadão, que foi publicado pela Ordem dos Enfermeiros, em maio de 2012.

Entre 2012-2015 cumpriu o mandato como Vice-presidente do Conselho Diretivo (CD) da Ordem dos Enfermeiros e, por inerência do cargo, assumiu com regularidade por delegação, as competências estatutárias do Bastonário nas suas ausências e impedimentos.

 

 

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