Interferência na autonomia médica – Carlos Cortes, Bastonário da Ordem dos Médicos

Carlos Cortes, Bastonário da Ordem dos Médicos

 

Nas próximas semanas, o Parlamento deverá iniciar a discussão da alteração dos Estatutos das Ordens Profissionais. Estas alterações, a concretizarem-se, não contribuirão em nada para a melhoria das condições de vida das pessoas e para o desenvolvimento do país. Era uma alteração desnecessária e incompreensível.

A revisão estatutária da Ordem dos Médicos (OM) decorre da Lei-Quadro das Ordens Profissionais, aprovada em dezembro de 2022 pela Assembleia da República, que prevê mudanças sem precedentes para o funcionamento das Ordens. Este preceito legal introduz elementos gravosos para a OM, uma vez que interfere com sua capacidade de regular a profissão e impede o desenvolvimento da sua missão primordial: a defesa da qualidade dos cuidados de saúde, a segurança dos doentes, a formação médica, a autorregulação da profissão e o estabelecimento regulamentar de normas de atuação.

Na perspetiva da OM, a Lei-Quadro compreende três aspetos problemáticos, que importa sublinhar.

  • Primeiro, a criação do Conselho de Supervisão e a obrigatoriedade de 60% dos seus membros serem não-Médicos. O Conselho de Supervisão terá poderes sobre as direções nacional e regionais, e sobre os órgãos técnicos e disciplinares da OM. Trata-se, claro, de uma intrusão inadmissível do poder político na atividade técnico-científica e de regulação da profissão que o próprio Estado delegou na Ordem dos Médicos. É fundamental a Ordem dos Médicos manter a sua independência e autonomia face a qualquer pressão externa, política, económica, financeira, ou outras, para poder contribuir para o desenvolvimento e melhoria dos cuidados de saúde. A intenção da Lei-Quadro é prejudicar, e até eliminar esta independência absolutamente fundamental.
  • Em segundo lugar, a Lei-Quadro prevê a criação de um Provedor do Doente da Ordem dos Médicos, o que, à partida, pareceria uma decisão acertada. Mas, e inexplicavelmente, o cargo pode ser desempenhado por qualquer pessoa, com uma exceção: ser médico! Ora, se existe a intenção de instituir a figura do Provedor do Doente da Ordem dos Médicos, este terá de ter conhecimentos aprofundados na área da medicina, uma vez que será ele a intervir, precisamente, em matérias de atividade médica ao nível técnico e científico. O Estado confere à OM o poder de defender a qualidade dos cuidados de saúde, por outro lado impede que o Provedor seja Médico, é que é uma manifesta incongruência.
  • Por último, a Lei-Quadro impõe a presença de não-Médicos nos Conselhos Disciplinares da OM. Estes órgãos, dotados de autonomia e funções próprias, analisam matérias muito sensíveis e de uma grande diferenciação técnica. A introdução de pessoas externas à profissão médica no seu seio é irracional. Como é que uma pessoa não-médica, terá competência para analisar e decidir sobre matérias diretamente ligadas ao exercício da profissão e às leges artis? Não exercendo medicina será muito difícil analisar ou tomar decisões sobre processos que exigem um conhecimento pericial aprofundado.

Estes três pontos, entre outros, merecem a nossa total oposição.

A alteração do Estatuto da OM preocupa-nos e deve preocupar toda a população. Ela abre porta a uma intromissão desproporcional, numa atividade de regulação que devia continuar a ser independente de intervenção ou pressões externas. Não encontramos nenhum benefício neste novo enquadramento estatutário.

No entanto, fruto da intervenção da OM foram, foram introduzidos alguns aspetos relevantes. A consagração da Lei do Ato Médico, resultado de longa negociação entre a OM e o Governo, era uma reivindicação há muito reclamada pelos médicos. Trata-se de um instrumento muito importante para oferecer mais segurança às pessoas, impedir o charlatanismo, proibir a prática de atos a profissionais não diferenciados e que não estejam devidamente habilitados.

Esta direção desenhou um caminho claro: modernizar a Ordem, unir os médicos e defender a qualidade dos cuidados de saúde. Mesmo com as tentativas de instrumentalização política, não nos desviaremos do rumo traçado. A qualidade da prestação de cuidados de saúde, a segurança dos utentes e o respeito pela dignidade dos Médicos assim o exigem.

 

Carlos Cortes,
Bastonário da Ordem dos Médicos

 

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