Póvoa de Varzim: Onde o Mar é Cúmplice da Terra
Terra de mar e terra de pescadores, a Póvoa de Varzim vive numa estreita ligação com o oceano, fonte primordial de dinamismo e sustento. Situada numa planície costeira arenosa a sul do Cabo de Santo André, a sua história faz-se em correlação com o mar, tal como as suas duas maiores tradições: a pesca e a agricultura.
“Por incrível que possa parecer, a Póvoa sempre teve uma grande tradição agrícola”. Um facto que poderá ser entendido com alguma estranheza pelos desconhecedores ou pela falsa noção de que esta se trata de uma atividade pouco praticada nas regiões costeiras, cuja propensão será para que o seu desenvolvimento se faça quase exclusivamente em função direta do mar. Porém, conforme esclarece Aires Pereira, presidente da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, a tradição agrícola da cidade funciona justamente em cumplicidade com aquele que é, inegavelmente, o maior recurso da região. Forma de agricultura única no mundo, que consiste em fazer uma cova larga e retangular nas dunas, as masseiras tradicionais da Póvoa levam a que ainda hoje grande parte da população faça a adubação das próprias terras com matérias provenientes do mar como os sargaços e o pilado. É graças à utilização deste mecanismo de fertilização natural que se diz que “os hortícolas da Póvoa de Varzim são muito especiais”.
Numa visão algo romantizada, o mar, entidade que impõe um misto de respeito e admiração, que traz alegria aos veraneantes e rouba a vida dos pescadores, espalha-se pelo edifício da Câmara Municipal ao longo das muitas obras de arte que se espalham pelas paredes, num reconhecimento evidente da sua grandiosidade. Não é por acaso que o mar é o enfoque da estratégia levada a cabo do município. “Uma estratégia, desde logo, de reforço da atividade do setor primário, nomeadamente nas questões que se prendem com a gestão da própria atividade piscatória e com o melhoramento das condições de acesso ao porto.” Há quase um mês, que devido à forte agitação das águas, a barra marítima da Póvoa de Varzim se encontra fechada, inibindo assim os pescadores de se lançarem ao mar e de poderem trabalhar. A solução provisória, que consiste na deslocação dos pescadores até outras barras que se encontrem abertas, como por exemplo a da Figueira da Foz, acarreta variados problemas de logística que se prendem com o transporte dos materiais, e torna-se demasiado dispendiosa. A este respeito, Aires Pereira afirma ser, na sua opinião, inconcebível que a gestão da área portuária a norte seja feita por uma instituição localizada em Peso da Régua. Porém, com a alteração da lei, essa gestão, da antiga responsabilidade do Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos, passará a ser tutelada pela antiga Docapesca, uma mudança que deixa o presidente mais esperançado relativamente a esta questão. “Esperemos que isso se traduza numa aposta efetiva na melhoria das condições de exploração do porto, que são condições de exploração ligadas à pesca, que para nós é fundamental. Um país que tem a maior área exclusiva de mar sobre domínio português importa 70% do peixe que come… Há aqui qualquer coisa que não está bem. Cabe ao Estado e às autarquias criarem, de alguma forma, condições para que se volte a explorar o mar por forma a ser um ativo na nossa economia”, ressalva o presidente.
A melhoria das condições de trabalho dos pescadores trata-se, aliás, de uma das problemáticas face à qual a Câmara tem feito por exercer maior pressão, nomeadamente em conversações com Manuel Pinto de Abreu, Secretário de Estado do Mar. “Está prometido para que neste verão se faça uma dragagem de fundo que permita colocar o porto de pesca da Póvoa de Varzim nas condições para a qual foi dimensionado e com cotas de acordo com o projeto do porto de pesca da Póvoa”, garante o autarca. A implementação de medidas concretas por parte das entidades competentes é hoje uma urgência, no sentido de que “se for ali ao nosso porto de pesca vai ver que só lá tem quatro ou cinco embarcações, quando estão sediadas e registadas mais de 400 embarcações. As embarcações não estão aqui porque o porto não oferece condições para que as pessoas todos os dias possam programar a sua vida. Acontece muitas vezes que os barcos saem depois já não podem regressar, porque as condições da barra não o permitem”, o que traz, consequentemente, dificuldades sobre o ponto de vista daquilo que é a gestão do próprio pescado, sendo que “a nossa Docapesca está semanas e semanas sem vender um quilo de peixe, porque não o tem”.
Todas estas implicações repercutem-se numa mais recente área de exploração, que é a atividade da náutica de recreio. A Póvoa de Varzim é atualmente detentora de uma marina, gerida pelo Clube Naval Povoense, que tem a maior área de estacionamento em seco de embarcações. Uma alternativa mais barata à manutenção de um barco no mediterrâneo, e que leva a que a infraestrutura se encontre preenchida com embarcações europeias, provenientes, por exemplo, da Dinamarca e da Noruega. Contudo, a marina atravessa hoje grandes dificuldades, uma vez que as embarcações já não têm acesso ao travel lift – mecanismo que permite que estas sejam pousadas em seco. “Tudo isto tem a ver com a falta de cota na entrada da barra e com o assoreamento que hoje a barra coloca”, lamenta, uma vez mais, Aires Pereira.
Outro recurso de extrema importância neste vínculo entre o concelho e o mar trata-se da exploração das praias. Um activo de valor, uma vez que a costa da Póvoa de Varzim está coberta com bandeiras azuis, “com as implicações que isto tem sob o ponto de vista da qualidade dos esgotos e do abastecimento de água, e das água fluviais que são descarregadas”. Preocupações que não podem, de forma alguma, ser negligenciadas, dado o estímulo dado à economia pelos três meses do período estival em que as praias recebem entre 150 a 200 mil pessoas. Consciente da sazonalidade desta dinâmica, o autarca volta a ressalvar a dimensão do problema da barra marítima. “A areia que se continua a tirar todos os anos das barras, e como o local onde se estão a depositar essas areias já depois da plataforma continental se encontra a mais de 500 metros da costa, faz com que não haja recarregamento das praias com os inertes que podiam ser aproveitados para isso. Os rios hoje já não transportam a quantidade de inertes que transportavam no passado, e que de alguma forma repunham a areia das nossas costas. O que está a acontecer actualmente na nossa zona, e que se estende também a Vila do Conde, é uma alteração significativa na morfologia das nossas praias. Algumas há que praticamente já não têm areia, porque esta vai sendo arrastada pelas correntes e não é reposta. Estamos a criar um ciclo vicioso e depois, ao dragarmos a barra, vamos colocar essa areia num sítio onde a mesma já não tem hipótese de regressar à plataforma continental”. Um cenário preocupante que, como considera Aires Pereira, implica uma gestão capaz de equilibrar todos os mencionados setores ligados ao mar, uma vez que todos são dependem uns dos outros. “O próprio pescador está dependente da atividade turística do nosso concelho, porque quanto mais atividade turística houver, mais procura de peixe há e maior valor acrescentado este passa a ter”, explica-nos. “Se não tivermos estas interligações entre todas estas atividades corremos sempre o risco de ficarmos muito condicionados apenas pela exploração das pescas.”
Parte da gestão do porto de pesca é feita hoje também pelo município. A este se devem as obras de requalificação do mesmo, bem como as obras executadas na marina. De acordo com o presidente, todos estes investimentos municipais estão a ser postos em causa por não haver, atualmente, “uma gestão adequada do porto”. Correspondente a uma área considerável, o espaço portuário deveria, no entender do presidente, ser aproveitado para outro tipo de eventos e atividades, que só trariam benefícios à população. Não se compreende, portanto, que este seja um espaço estruturalmente dissociado da cidade. “As áreas portuárias são áreas onde não se aplicam os planos de ordenamento da orla costeira. Onde a autarquia não tem uma intervenção direta. Esperemos agora que com esta alteração legislativa isto se consiga resolver”, acrescenta. No seu entender, as consciências deverão ser alertadas para este recurso, e para “a atividade piscatória propriamente dita e tudo o que lhe está a jusante e que tem a ver com a gestão e com a integração do porto na vida da cidade”.
De mãos atadas
“Temos um plano estratégico de turismo que fizemos há uns anos e a fileira do mar, que vai desde a restauração a esta integração com a área agrícola, é para nós um dos sectores chave do nosso desenvolvimento”. Na Póvoa de Varzim, a relação com o mar não é circunstancial, mas sim o modo de vida da cidade e dos seus cidadãos, e que engloba ainda “as pessoas que nos visitam”. Assim sendo, é para o presidente do município “um objectivo estratégico muito importante que esta área faça parte do nosso desenvolvimento e não viva, embora dentro da cidade, de costas voltadas para a cidade”. Porém, infelizmente, a autarquia não se encontra dotada de autonomia suficiente que lhe permita uma intervenção mais directa nestas matérias. Portanto, “nós somos uma voz no sentido de chamar a atenção para este tipo de actividade”.
Apesar da Câmara Municipal se encontrar de mãos atadas para levar a cabo as grandes mudanças que considera fundamentais, são da sua responsabilidade grandes investimentos e alguma substituição, quando possível, nos afazeres da administração central, na resolução de todos os problemas inerentes à destruição provocada pelas mais recentes intempéries climatéricas. “Actuamos também em relação à segurança dos nossos pescadores”. Criada conjuntamente pelos municípios da Póvoa de Varzim e de Vila do Conde, que durante muito tempo sustentaram o projecto, a Associação Pró Maior Segurança dos Homens do Mar, tem como objectivo desenvolver medidas que visam o esclarecimento e a segurança de todos os trabalhadores dos mais variados sectores relaccionados com o mar.
Em suma, a referida pressão exercida pela câmara é executada, na sua maioria, pelo alerta feito às “entidades que têm efectivamente responsabilidades nesta área, para que nos ouçam e entendam que somos um parceiro que não pode ser de maneira alguma posto de lado nesta questão, que é a nossa relação com o mar e a aposta no mar”. Apesar dos “muito defeitos” e da margem circunscrita de atuação das autarquias, Aires Pereira compreende que a mais valia destas instituições se prende com o facto das mesmas “terem rosto” e de, por conseguinte, ser a estas que a população se dirige para tratar dos seus assuntos. Desta feita, considera que “seria muito mais fácil centralizarmo-nos aqui através de um gabinete onde todas essas entidades pudessem convergir e tomarem as suas decisões”. A questão da passagem da jurisdição das áreas portuárias para as autarquias tem feito parte do debate actual e é uma das principais lutas envergadas pela Câmara Municipal da Póvoa de Varzim. Ao seu presidente não restam dúvidas: “as autarquias teriam uma apetência e uma relação de proximidade muito maiores para poderem fazer uma melhor gestão destas áreas. Acredito que assim estas tornar-se-iam muito mais competitivas. Entretanto, limitamo-nos a ser uma espécie de intermediário quem tem de interceder face a quem tem a tutela”.
Na opinião deste autarca, o futuro da Póvoa de Varzim terá de passar forçosamente pelo maior estreitamento desta relação com o mar, numa óptica de “exploração efectiva da área portuária e na melhoria das condições de acesso do próprio porto”, porque só assim se poderão cimentar todas as outras actividades que lhe estão ligadas, como o turismo e o próprio comércio.