Dia Mundial da Saúde – Mieloma Múltiplo

Professora Cristina João – Consultora em Hematologia no Centro Clínico da Fundação Champalimaud, Responsável pelo Grupo de Investigação em Hemato-oncologia na mesma instituição, Professora de Imunologia na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa

O Mieloma Múltiplo (MM) é uma doença oncológica do sangue. Apesar de ser considerada uma doença rara, na Europa são diagnosticados anualmente cerca de 39.000 doentes com esta patologia e prevê-se que a sua incidência aumente para mais de 43.000 até 2030. É a terceira doença hematológica mais comum, a seguir às leucemias e aos linfomas. Em Portugal, o Grupo Português de Mieloma Múltiplo recolheu dados que foram apresentados no Congresso Europeu de Hematologia em 2020 e apurou que surgem cerca de 700 novos casos de Mieloma Múltiplo por ano, sendo que a sua incidência é ligeiramente maior em homens e é mais frequente a partir dos 65 anos, com uma mediana de aparecimento aos 67 anos de idade. É um cancro que surge por alteração de um tipo de células imunes que existem na medula óssea, os plasmócitos. Estes plasmócitos alterados passam a produzir um anticorpo disfuncional, chamado proteína M que, ao depositar-se em diversos órgãos, pode causar sintomas e alterações analíticas. Adicionalmente, os plasmócitos da doença acumulam-se na medula óssea e excluem as células sanguíneas saudáveis, podendo causar diminuição da produção das células do sangue, originando anemia ou diminuição da contagem dos glóbulos brancos ou plaquetas. Também os anticorpos normais são produzidos em menor quantidade e as pessoas ficam imunodeprimidas (mais suscetíveis a infeções). A proliferação dos plasmócitos clonais na medula óssea causa ainda fragilidade do próprio osso e os doentes com MM têm frequentemente dores ósseas e maior risco de fraturas. A dor é o sintoma mais frequente e, em alguns casos, o diagnóstico é feito após fraturas. Os ossos mais envolvidos são as vertebras, as costelas, o crânio e os ossos longos.

No entanto, na maioria dos casos, é uma doença silenciosa e os seus sintomas são pouco específicos e podem, muitas das vezes ser desvalorizados, até que exista uma análise ao sangue ou urina que demonstre a presença da proteína M no sangue, na urina ou em ambos. Os sintomas podem ainda incluir:

  • Cansaço persistente devido a anemia ou insuficiência renal
  • Infeções recorrentes não explicadas, tais como pneumonia
  • Perturbações do Sistema nervoso como polineuropatia periférica
  • Falta de ar ou evidência de insuficiência cardíaca ou renal.

Para o diagnóstico de MM é necessário quantificar a proteína M no sangue na urina, assim como fazer uma avaliação da medula óssea (MO) para que se quantifiquem e estudem os plasmócitos que originam esta doença. A avaliação da MO é feita através de um mielograma e de uma biopsia ósteo-medular. Por fim, é ainda importante avaliar a estrutura do próprio osso, recorrendo a métodos de imagem como a Tomografia Computorizada (TC), a Ressonância Magnética (RM) ou mesmo técnicas de imagem funcional como a Tomografia de Emissão de Positrões associada à TC (PET/CT).

Atualmente nós e outros cientistas estão a desenvolver projetos de investigação científica no sentido de facilitar a forma como diagnosticamos o mieloma múltiplo, nomeadamente, ultrapassado a necessidade de realização de biopsias de medula óssea com a utilização de biópsias líquidas. Têm sido estudadas as células tumorais circulantes no sangue e o material genético circulante, e também as vesiculas extracelulares que as células produzem e que transportam informação específica de cada tipo de célula. Estas biópsias líquidas estão a ser estudadas de forma a tornar o diagnóstico e a monitorização destes doentes menos invasiva e mais acessível a qualquer momento.

Dado não existirem estratégias de prevenção ou rastreio da população em geral propostos para o mieloma múltiplo, os médicos assistentes deverão estar alerta para os resultados de análises de sangue e urina realizadas em contexto de rotina e a eventuais sintomas que possam surgir. São conhecidas duas fases precursoras desta doença: a Gamapatia Monoclonal de Significado Indeterminado (MGUS) e o MM indolente. Estas duas situações clínicas não são ainda alvo de terapêutica e as pessoas com estes diagnósticos ficam apenas em observação.

Para o MM, o tratamento tem evoluído muito nas últimas três décadas, com dezenas de novos medicamentos aprovados e novas combinações e sequencias de medicamentos que tem levado a um aumento da sobrevivência e da qualidade de vida dos doentes com MM. No caso dos doentes com menos de 70 anos de idade e sem outras patologias graves a proposta de primeira linha de tratamento é tipicamente um tratamento de indução, que inclui alguns ciclos de um protocolo que combine 3 ou 4 fármacos e depois um curso de quimioterapia de alta dose e transplante autólogo de progenitores hematopoiéticos (TAPH). Após o transplante autólogo, e no caso de ter havido resposta, o doente avança para um tratamento oral de manutenção que diminui a probabilidade de o MM reaparecer.

Existem várias classes de medicamentos que podem ser utilizados nas várias fases da doença. Estas classes incluem a quimioterapia, a corticoterapia, a imunoterapia com anticorpos monoclonais simples ou conjugados, os imunomoduladores ou os inibidores do proteosoma de várias gerações. Estes fármacos podem ser combinados uns com os outros de forma a exercer um maior efeito contra a doença, aumentado a sobrevivência das pessoas que têm Mieloma Múltiplo. A imunoterapia anti-MM tem tido especiais avanços nos últimos anos, com células CARs e constructos proteicos anti-MM, que recrutam directamente linfócitos T do sistema imune contra estas células tumorais.

Para além dos tratamentos contra o mieloma múltiplo existem ainda vários outros tratamentos que são utilizados para suporte do doente, sendo comum que os doentes com MM precisem outras terapias de suporte como analgésicos, antidepressivos ou relaxantes musculares.

A multidisciplinaridade é fundamental na abordagem da pessoa com mieloma múltiplo, uma vez que é comum esta doença envolver vários órgãos e sistemas. A equipa de cuidados de saúde de doentes com MM pode incluir para além dos hematologistas e enfermeiros, fisiatras, ortopedistas, fisioterapeutas, neurocirurgiões, imagiologistas, médicos de medicina nuclear, radioterapeutas, psicólogos, psiquiatras, neurologistas, entre outros.

No campo social, as associações de doentes promovem cada vez mais atividades que dão a conhecer este e outros cancros e ajudam as pessoas com doença e cuidadores a ultrapassar alguns dos problemas que têm, para além de estimularem reflecções em grupo que promovem a uma melhor gestão da doença.

No entanto, é comum que o MM volte a aparecer, com necessidade de ser instituído um novo tratamento, normalmente diferente do protocolo utilizado inicialmente. Vários fármacos têm mostrado resultados promissores no tratamento do MM, especialmente, a imunoterapia. As agências do medicamento americanas e europeias já aprovaram alguns destas terapias inovadoras e, em Portugal, estamos agora a começar a utilizar alguns destes medicamentos, em programas de acesso precoce ou em ensaios clínicos.

O trabalho conjunto das companhias farmacêuticas e das agências reguladoras de cada país traduz-se, assim, na melhoria da qualidade de vida e longevidade aos doentes com MM, sendo essencial continuar a trilhar um caminho de colaboração inter-institucional que traga a inovação para prática clínica de forma rápida e uniforme. Tem sido evidente um aumento da consciencialização nacional (da classe médica, sociedade em geral e classe política) acerca desta doença e dos seus tratamentos. Os imensos avanços terapêuticos permitem que tenhamos esperança num futuro melhor, em que o acesso a medicamentos inovadores e a melhores cuidados de saúde seja possível para todos os doentes de mieloma, permitindo que estes mantenham um papel ativo na sociedade durante mais tempo. Um futuro em que os cuidadores possam sentir-se mais apoiados e reconhecidos, em sintonia com os profissionais de saúde e as associações de doentes.

Nos próximos anos assistiremos ao desenvolvimento de mais e melhores tratamentos para o MM. A investigação fundamental a nível académico é um importante catalizador da inovação, permitindo a identificação de novos alvos e de novas moléculas. No entanto, a tradução desta inovação para o cuidado dos doentes exige um grande investimento de forma a assegurar a eficácia e segurança em doentes reais, sendo fundamental criar as condições para que os médicos possam desenvolver também a sua atividade enquanto investigadores clínicos. Desta forma, instituições e profissionais poderão não só contribuir para a geração de evidência, como também para o acesso precoce dos doentes a novas moléculas ainda na fase de testes. Esta é, muitas vezes, a melhor esperança de doentes com mieloma múltiplo em recaída ou resistente a outros tratamentos.

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