Cruz Vilaça Advogados: na primeira linha da luta pela reforma do sistema de justiça
José Luís da Cruz Vilaça, Managing Partner da Cruz Vilaça Advogados, em entrevista, partilha valiosos insights sobre as transformações mais significativas na área da justiça ao longo dos últimos 50 anos, destacando que a reforma do sistema de justiça é um dos grandes desafios do nosso país para os próximos anos.
Considerando os 50 anos da Revolução de Abril, como é que avalia o impacto desse evento nas estruturas e práticas da justiça em Portugal, especialmente em relação aos direitos fundamentais e ao estado de direito?
Antes de mais, o 25 de abril e o processo que se lhe seguiu, ao mudarem a natureza do regime anterior e ao acabarem com estruturas e práticas repressivas de direitos fundamentais (liberdade de expressão, de associação, de participação e oposição política), representaram uma mudança radical na defesa desses direitos. Esse aspeto foi marcante para a instauração de um modelo constitucional de democracia, de respeito pelos direitos individuais e de cidadania, de freios e contrapesos destinados a garantir a independência e o equilíbrio entre os vários poderes. A Justiça em Portugal passou a estar, pelo menos em tese, ao serviço da defesa dos direitos dos cidadãos e dos seus interesses legítimos.
Na sua opinião, quais foram as transformações mais significativas na área da justiça ao longo destas cinco décadas, e como é que essas mudanças têm moldado a advocacia em Portugal?
Tenho um razoável conhecimento dos problemas do sistema judicial português, no quadro do qual trabalho há muitos anos. Tive ainda o privilégio de viver intensamente durante quase quatro décadas a realidade de outros sistemas judiciais, nomeadamente o da União Europeia, como magistrado e como advogado, o que me permite comparações úteis. Houve, na justiça portuguesa, transformações positivas ao longo dos anos, – na diversificação do acesso às profissões jurídicas, na formação dos magistrados para os novos tempos democráticos, no reforço das garantias processuais e de defesa; no entanto, este continua com as maiores dificuldades em responder aos desafios da sociedade e da organização do Estado. A reforma decisiva nunca se fez, e muitas das que se fizeram foram-se diluindo ou desvirtuando, por dificuldade de adaptação aos novos tempos. Percebe-se isso no aumento da desconfiança dos cidadãos em relação ao sistema de justiça, ao qual faltam meios de toda a ordem, materiais, financeiros e humanos (juízes especializados, assessores, oficiais de justiça). O Centro de Estudos Judiciários (CEJ) teve um papel histórico importante, mas, tal como está organizado, acabou por contribuir para fechar a justiça e os seus agentes sobre si mesmos. Os tempos da justiça pouco têm que ver com as exigências da vida real e não se vê que as coisas melhorem ou que alguém seja responsabilizado, como é o caso das violações reiteradas do segredo de justiça. O corporativismo continua a ser uma força demasiado presente. É seguro que a generalidade dos magistrados e agentes da justiça não pode ser colocada sob suspeita de desinteresse ou de comportamentos reprováveis; tenho aliás encontrado, com imensa satisfação, juízes, magistrados e funcionários de grande qualidade e rigor profissional. Mas factos recentes têm-nos dado uma imagem penosa (real ou aparente) de tensão entre Ministério Público e magistratura judicial, em processos de grande relevância para a saúde do sistema democrático. Ora, o setor não deve esquivar-se ao escrutínio público, porque a sua missão é exercida em nome da sociedade e do interesse público. Por outro lado, se o exercício da advocacia se modernizou, nos últimos 35 anos, através da criação de modernas e bem organizadas sociedades de advogados, há um largo setor da profissão com dificuldade em adaptar-se e até em sobreviver. No entanto, o prestígio da profissão também vive de nomes individuais de advogados reconhecidos e respeitados, que sejam garantes da ética, da deontologia e da independência no exercício desta nobre atividade, mas que vão minguando. A forma acrítica como a legislação e os estatutos da Ordem se alteraram recentemente – por alegado imperativo da UE de abertura do acesso à profissão (prática multidisciplinar, definição dos atos próprios dos advogados, reforma dos estágios) – pode ter péssimas consequências se não for devidamente acautelada e, eventualmente, corrigida.
Portugal é o 5.º país da União Europeia onde os processos demoram mais. Na sua ótica, quais as razões que colocam a justiça portuguesa nesta posição? Quais as principais diferenças da justiça portuguesa no âmbito europeu?
Uma justiça lenta e ineficaz é um formidável entrave à proteção dos direitos, um travão ao investimento, um peso enorme na economia de um país face à concorrência internacional, e mesmo um risco para a saúde da democracia. Como referi atrás, a reforma indispensável está por fazer, os recursos são insuficientes, não existe um sistema adequado de preparação para o acesso às profissões jurídicas reguladas. Parece-me urgente uma reforma do CEJ e, em geral, dos modelos de formação de magistrados e advogados. Além disso, erros da justiça prejudicam o cumprimento da sua missão quando não são corrigidos ou o são com mais de 20 anos de atraso. A lentidão dos processos (tantas vezes reprovada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos) é uma das razões principais para fazer da justiça portuguesa um sistema injusto (“justice delayed is justice denyed”). Tive a honra de pertencer durante 15 anos, em diferentes ocasiões, circunstâncias e funções, ao Tribunal de Justiça e ao então Tribunal de Primeira Instância da UE, de que fui o primeiro presidente. O Tribunal de Justiça – Tribunal Constitucional e Supremo para toda a UE – recebe atualmente mais de mil novos processos por ano e não tem processos em atraso! A razão não é segredo: esforço permanente de auto-reforma e de propostas legislativas, racionalização dos procedimentos, aplicação de novas tecnologias, simplificação dos processos, sem prejuízo da qualidade da proteção dos direitos. Na União Europeia há sistemas e tradições jurídicas diversas: latinas, anglo-saxónicas, germânicas. Porque não tomar como modelo o sistema alemão, em que juízes, advogados e outros agentes da justiça, partilham um tronco comum de formação, incluindo experiências e estágios profissionais, sem que seja necessário escolher o rumo à saída da Universidade e permitindo a todos conhecer bem as realidades que vão ter de enfrentar?
Que passos têm de ser dados para que a justiça portuguesa possa ser mais célere? Que reformas devem ser implementadas para melhorar a eficiência, transparência e qualidade da justiça?
Cada tipo de contencioso tem as suas especificidades e os problemas não se resolvem com soluções pré-fabricadas. P. ex., é necessário corrigir erros como os dos “mega-processos” de natureza penal. Em casos fiscais, o recurso à arbitragem institucionalizada tem dado boas provas de celeridade, qualidade e aceitabilidade, ao ponto de os órgãos de arbitragem tributária serem reconhecidos pelo Tribunal de Justiça como verdadeiros órgãos jurisdicionais para efeitos de “reenvio prejudicial”. É certamente necessário melhorar a organização e a administração da justiça em casos de família e menores. Mas é também importante continuar a libertar os tribunais de processos massificados, que possam ser resolvidos através de métodos alternativos de resolução de litígios, não limitados a quem tenha capacidade financeira para suportar os custos. Certas soluções transversais deviam claramente impor-se. Aqui também, o conhecimento da experiência do Tribunal de Justiça da UE pode ser muito útil: pequenas mudanças na aparência, mas enormes nas consequências. P. ex., para os advogados, número máximo de páginas em cada articulado, organização impecável dos anexos, limitação do tempo de palavra nas audiências; para os magistrados, a estandardização da estrutura das sentenças e acórdãos, acelerando a sua elaboração, assegurando a clareza e facilitando a compreensão; para todo o sistema, mais transparência, através da digitalização e de uma política adequada de comunicação. E, ponto fundamental, como no Tribunal de Justiça, os prazos não devem ser só para as partes e seus advogados: juízes e advogados-gerais obrigam-se a cumprir prazos para os atos processuais a praticar, evitando afetar a celeridade processual e os direitos e expetativas dos requerentes. Mais: não tenho memória, em 15 anos, de uma audiência adiada (exceto por imperiosa razão de saúde) ou sequer começada com cinco minutos de atraso!
Olhando para o futuro, quais são os principais desafios que vislumbra para a justiça em Portugal e qual é o papel que a Cruz Vilaça Advogados espera desempenhar nesse contexto?
A resposta a esta pergunta resulta de tudo o que precede. E a conclusão não pode deixar de ser que a reforma do sistema de justiça é (um dos) grandes desafios do país para os próximos anos. Exige-se determinação e coragem política para a levar a cabo, mas também são necessários sentido de responsabilidade e cuidado para evitar estragar o que de bom esteja a fazer-se. Sobretudo, impõe-se procurar um consenso alargado entre operadores da justiça e seus representantes, governo e partidos políticos com representação parlamentar. A Cruz Vilaça Advogados vai continuar a estar, espero, na primeira linha da luta por essa reforma.