Centenário da Insulinoterapia

A prevalência da diabetes, principal causa de cegueira, a primeira causa de insuficiência renal e causa importante de doença cardiovascular no mundo occidental, duplicou em 2020. Num ano em que se comemora o centenário da insulinoterapia, o Professor Davide Carvalho alerta para a educação terapêutica fundamental ao longo de todo o tratamento.

Davide Carvalho, MD, PhD

Head of the Department of Endocrinology, Diabetes and Metabolism Centro Hospitalar Universitário de S. João

Associate Professor Faculty of Medicine University of Porto (UP), Portugal

Core Researcher i3s UP

Há uma realidade muito distinta antes e depois do aparecimento da insulina. Que importância teve a introdução da insulina no tratamento da diabetes?

A insulinoterapia é única terapêutica para o tratamento da diabetes tipo 1, uma terapêutica utilizada por 20 a 30 por cento dos diabéticos tipo 2 e por muitos doentes com diabetes gestacional. Antes da introdução da insulinoterapia muitos destes doentes morriam muito precocemente – ao fim de meses. Muitos doentes com diabetes mellitus tipo 2, ao longo da pro­gressão da sua doença irão eventualmente requerer e beneficiar de tratamento com insulina. A diabetes tipo 2 é uma doença pro­gressiva e deve ser objetivamente explicado de forma regular aos doentes a possibilidade de ser necessário iniciar esta terapêutica, devendo os profissionais de saúde evitar usar a insulina como uma ameaça ou descrever o início da insulinoterapia como um sinal de falência pessoal ou de castigo. Pelo contrário, devem sublinhar a importância da insulina para manter e atingir um bom controlo glicémico dada a progressão da doença. A educação terapêutica é fundamental ao longo de todo o tratamento da pessoa com diabetes, mas mais ainda quando necessita de insulinoterapia. O doente deve estar envolvido no tratamento e fazer a auto-titulação das doses de insulina baseada na autovigi­lância glicémica. A educação deve incluir como proceder em caso de exercício, compreender também aspetos da dieta e como evitar e tratar as hipoglicemias (baixas de açúcar).

Como está a ser comemorado o centenário da insulinoterapia em Portugal e qual o envolvimento da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo (SPEDM) nas iniciativas comemorativas?

Está a ser planeado um conjunto de eventos que acompanharão uma exposição sobre os 100 da insulinoterapia a ser realizados nos 18 distritos do país (ver cartaz da exposição).

A pandemia da Covid-19 está na ordem do dia. No entanto, ouve-se dizer que a diabetes é a pandemia do século XXI. Concorda com esta afirmação?

Os números da diabetes têm vindo a crescer de forma dramática e todas as expectativas pessimistas têm sido excedidas. Em 2000 a prevalência de diabetes era 4,6% em todo o mundo, em 2020 duplicou para 9,1% (mais de 463 milhões) e em 2045 prevê-se que seja de 11,7% (mais de 700 milhões) Admite-se que com todas as campanhas de prevenção será possível reduzir para 10% a prevalência em 2045. A diabetes é hoje responsável por 5 milhões de mortes: em cada 6 segundos morre uma pessoa com diabetes. Mas mais importante é que 50% dos casos estão por diagnosticar. Em 2009, o Estudo Prevadiab apurou uma prevalência de Diabetes no território nacional, entre os 20 e os 79 anos de idade, de 11,7%, e cerca de 44% da população desconhecia ter a doença. Tendo por base o Prevadiab, o Observatório Nacional para a Diabetes estimou para 2015 uma prevalência de Diabetes de 13,3% e que 44% das pessoas desconheceriam o diagnóstico. Em 2015, de acordo com o Inquérito Nacional de Saúde com Exame Físico (INSEF 2015), a prevalência padronizada da Diabetes na população residente em Portugal com idades entre os 25 e os74 anos era de 9,9%, sendo mais elevada nos homens, que apresentam uma prevalência de 12,1%, por comparação com 7,8% das mulheres. Neste estudo, 13% das pessoas com Diabetes desconheciam o diagnóstico. O mesmo não incluiu a PTOG para estabelecer o diagnóstico. Esse facto, bem como diferenças ligeiras no grupo etário estudado, terão contribuído para obtenção de uma prevalência não coincidente com a estimada, tendo por base o estudo Prevadiab.

Em relação a 2017, a OCDE (na sua publicação de 2018) apontava para uma prevalência padronizada de Diabetes tipo 1 e tipo 2 diagnosticadas em Portugal, de 9,9% na população entre os 18 e os 99 anos.

Existem dois tipos de diabetes. Como podemos diferenciá-los e quais os sintomas em cada um deles?

Para além da diabetes gestacional, que é uma forma de diabetes de aparecimento na gravidez e que desaparece com o fim da gestação, a diabetes tipo 1 é mais característica da criança, embora possa aparecer em qualquer idade, e caracteriza-se por marcada perda de peso (5-6 kg em poucos dias), muita sede e urina com muita frequência e em grandes quantidades. A diabetes tipo 2 aparece em pessoas obesas e é frequentemente assintomática, e pode manifestar-se por apetite aumentado e sede, e volumes de urina aumentados.

A medicina e a saúde em geral têm evoluído significativamente ao longo das últimas décadas. Que progressos ao nível do diagnóstico, do controle e do tratamento da diabetes gostaria de destacar?

Nos últimos anos houve o aparecimento de medicamentos que modificam o prognóstico da diabetes, uns são inibidores da reabsorção da glicose pela urina (Inibidores dos SGLT2) e outros estimulam a secreção de insulina e inibem o glucagon (agonistas dos receptores do GLP-1). Concentrar-me-ei, no entanto, nas novidades na insulinoterapia. Os avanços na engenharia genética permitiram aos fabricantes modificar a sequência de aminoácidos da molécula de insulina para alterar as suas propriedades farmacocinéticas e, assim, criar análogos de insulina; o primeiro “análogo” da insulina, a insulina lispro, tem uma ação mais rápida do que a insulina solúvel convencional. Ficou disponível na década de 1990. Também foram desenvolvidos análogos que têm uma taxa de absorção muito mais lenta e, portanto, uma duração de ação prolongada. A insulina quando injetada a nível subcutâneo tem tendência a formar hexâmeros biologicamente inativos, a velocidade do início da sua ação depende da rapidez com que se dissocia em monômeros ativos.

A insulina humana tem um início de ação mais rápido do que qualquer uma das insulinas de origem animal (insulina suína tem um início de ação mais rápido do que a insulina bovina). Contudo, as insulinas solúveis convencionais mais antigas têm um comportamento relativamente lento, pelo que a pessoa com diabetes deve tomar essas insulinas cerca de 30 minutos antes de comer. Os análogos humanos de ação rápida, as insulinas lispro, aspártica, glulisina, fast-aspártica, têm ligações fracas entre os componentes monoméricos, permitindo a rápida dissociação de hexâmeros em monômeros. Estes análogos podem então ser absorvidos rapidamente do local de injeção, e o seu efeito hipoglicemiante começa 5 a 10 minutos depois. Por outro lado, análogos de insulina de ação prolongada – insulina glargina, glargina U 300, insulina detemir, degludec e icodec – dissociam-se mais lentamente e são absorvidas muito lentamente, quase desprovidas de pico de insulina, e o seu efeito pode ser prolongado até aos 7 dias. As concentrações plasmáticas de insulina a estes análogos de longa ação atingem um nível de planalto, que persiste na maior parte do dia e é mais parecido com a secreção basal de insulina na pessoa em estado não diabética. Geralmente são administrados uma vez ou duas vezes por dia. Os análogos de ação mais longa, como a insulina degludec, duram até 42 horas sem pico de concentração. A icodec é uma insulina humana em que a substituição de 3 AA impede a degradação enzimática e assegura a estabilidade, a adição de ácidos gordos di-ácidos de C20 proporciona uma ligação forte e reversível à albumina e consegue uma duração de ação de uma semana sendo o estado de equilíbrio alcançado ao fim de 4 semanas.

Brevemente vai ser lançada no mercado uma nova insulina ultra-rápida (aparentemente mais rápida do que a Fast-aspártica, a insulina Lyumjev em que a adição de citrato aumenta a permeabilidade vascular local e acelera a absorção da insulina, e o treprostinil, induz a vasodilatação local de forma a conseguir uma absorção acelerada da insulina lispro e fica indetetável no plasma após administração.

Há uma variedade de dispositivos infusores de insulina comparticipadas pelo SNS. Em geral, existem dois tipos de dispositivos de bomba: As bombas de insulina tradicionais têm um reservatório (ou recipiente) de insulina e um mecanismo de bombeamento, e ligam-se ao corpo com tubos e um conjunto de infusão.

O corpo da bomba contém botões que permitem programar a administração de insulina para as refeições, tipos específicos de taxas basais ou suspender a infusão de insulina, se necessário. As bombas adesivas de insulina são usadas diretamente no corpo e têm um reservatório, mecanismo de bombeamento e conjunto de infusão dentro de uma pequena caixa. As bombas adesivas são controladas sem fio por um dispositivo separado que permite a programação da administração de insulina para as refeições a partir do adesivo.

Os novos dispositivos de monitorização subcutânea têm revolucionado o tratamento da diabetes e fornecem dados contínuos durante 14 dias. Novos dispositivos implantáveis subcutâneos podem permitir obter resultados contínuos durante 3 a 6 meses.

Banting e Best com o cão 408, pancreatectomizado e tratado com insulina em agosto de 1921, no telhado do edifício da Universidade de Toronto.

     Marcos no desenvolvimento da Insulina:

1920 – Isolamento e desenvolvimento das insulinas solúveis

1930 – Insulinas de longa duração de ação (adição de protamina e de zinco)

1940 – Insulina isofânica (NPH – Neutral Protamine Hagedorn)

1950 – Insulinas Lentas

1970 – Purificação das insulinas animais

1980 – Insulinas Humanas

1990 – Análogos de Insulina

2000 – Biosimilares da Insulina

Que cuidados especiais se devem ter na prevenção da diabetes?

Os avanços na prevenção da diabetes tipo 1 tem revelado avanços muito tímidos com uso de fármacos imunomoduladores. O aumento da atividade física associada a dieta hipocalórica têm demonstrada uma eficácia superior a 50% na prevenção da diabetes tipo 2. A grande dificuldade tem sido a manutenção destas modificações de estilo de vida a longo prazo.

Que mensagem final gostaria de deixar no sentido de uma maior consciencialização da população portuguesa para a doença da diabetes?

A diabetes é a principal causa de cegueira, a primeira causa de insuficiência renal e causa importante de doença cardiovascular no mundo ocidental. As pessoas com história familiar ou com excesso de peso devem procurar a prevenção da sua doença. Embora haja grandes progressos no tratamento da diabetes, a prevenção é o mais importante.

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