Transformar dor em amor

O universo e a essência da Marine Antunes numa entrevista exclusiva à Revista Business Portugal, um trajeto verdadeiramente inspirador, uma história de superação, força e resiliência.

 

Marine Antunes

 

 

Marine, a sua história de superação do cancro, marcada por uma abordagem única e corajosa através do humor, é verdadeiramente inspiradora. Como é que descobriu que o humor poderia ser uma ferramenta tão poderosa para enfrentar desafios tão difíceis como a doença?

O humor sempre esteve presente na minha  vida e na vida da minha família. A minha avó Beatriz era uma contadora de histórias, tinha muita graça e eu via nos meus tios e no meu pai essa facilidade de brincar com as histórias, as metáforas, a serem irónicos e perspicazes. Tive a sorte de ter vivido uma infância com muita alegria e riso e fui aprendendo a brincar com as palavras, vendo. Quando adoeci aos 13 anos, automaticamente, entendemos que o humor era quase um alívio – havia espaço para ele. Não é que a situação não fosse dramática  (e não imagino o que os meus pais passaram) mas ele surgia nas minhas irmãs, que tocavam à campainha no meu quarto do internamento só para ver se o enfermeiro giro, ou aparecia ou na minha mãe que fazia alguma observação mordaz no momento certo e que nos provocava um ataque de riso. O humor surgia como um amigo, um escape, uma necessidade. E eu decidi que o cancro poderia levar-me o cabelo mas nunca a alegria e aprendi, muito cedo, a rir-me de mim mesma. Antes de criar o projeto Quando Cancro com Humor aos 22 anos, tirei um curso de stand-up comedy e aventurei-me na comédia durante dois anos, a par dos cursos de escrita criativa que fui tirando. Quando criei o meu projeto foi esse o mote  – mostrar que era possível ser feliz no caos e falar do tema cancro com uma piada na manga. Mas nunca foi sobre fazer piadas sobre o cancro mas sim permitir que o humor surgisse mesmo na dor.

O projeto “Cancro com Humor” tem sido uma fonte incrível de apoio e inspiração para inúmeros pacientes e cuidadores. Também escreveu obras como “Teorias de Uma (Not) Atinadinha” e “Manual para Descomplicar o Cancro”. Qual tem sido o seu impacto na comunidade oncológica? Como encara a interseção entre humor e autoajuda na sua escrita?

Na verdade o Manual para Descomplicar o Cancro é o meu quarto livro  – em 2013 publiquei o Cancro com Humor e em 2017 o Cancro com Humor 2  – e defendo sem dúvida o humor como terapia. Aliás, no meu internamento com 13 anos eu já tinha um diário amarelo porque precisava muito de desabafar e sentia que só ali na escrita dizia exatamente aquilo que sentia. Fui usando o humor e a escrita para chegar aos outros mas sobretudo para me entender a mim. Ao longo dos anos, além das minhas redes, escrevi três anos para o Jornal I, para a plataforma Capazes e para a Revista Zen Energy. E todos essas plataformas permitem o quê? A partilha. Esse tem sido o meu contributo: partilhar e desmistificar com humor um tema que, até há pouco tempo, era abordado com tanto tabu. Ao longo dos anos, por conta da escrita e da oralidade tenho recebido um feedback diário de doentes, sobreviventes, cuidadores e também profissionais de saúde. As pessoas contam-me a sua história, porque se identificam com a minha e acabamos por nos sentir menos sozinhos. Eu também me incluo no grupo, porque aprendo muito com quem chega até mim. É brutal perceber que com este trabalho há impacto real na vida das pessoas: chegam-me relatos de pais que conseguiram conversar com os seus  filhos, cuidadores que encontraram no livro aluma dica para os seus amores, pessoas que antigamente odiavam todo o processo e, com a percepção da importância da alegria, permitiram-se viver momentos felizes, integrando associações, grupos de entre ajuda. Muitas dessas pessoas também acabaram por criar páginas nas redes, lançar os seus projetos e livros que apadrinhei! É incrível perceber que as pessoas mais do que inspiradas acabam por criar os seus projetos e vejo-as a transformar a dor em amor e até em futuro.

Co-fundou o projeto “Se Podes Sonhar, Podes Concretizar” com o seu marido, Tiago Castro, visando o público jovem. De que maneira este projeto complementa a sua abordagem para lidar com questões sérias de uma maneira acessível aos jovens? Como avalia o seu papel como palestrante na jornada de transformação pessoal e superação de desafios dos seus espectadores?

Em 2018 lançámos a nossa palestra em conjunto para jovens: em cima do palco, sem tabus apresentámos a nossa história. Percebemos que as crianças e os adolescentes são o público mais exigente e real e durante meses andámos pelo país inteiro a falar com o coração na mão. Temas como o bullying e cancro na infância, a adolescência e o mundo da televisão; o sucesso e o insucesso e, sobretudo, os afetos foram a base da nossa partilha.  A par deste projeto, sou palestrante profissional há dez anos com o tema Cancro com Humor – todos os meses apresento a minha Palestra É Possível Ser Feliz no Caos em hospitais, associações, eventos, empresas etc e, sem dúvida, fazê-lo nas escolas e com jovens ensinou-me muito. Percebi que este caminho de desmistificar e sensibilizar tinha mesmo de passar também pelas escolas – e foi brutal entender como as crianças estão familiarizadas com o tema porque conhecem alguém com cancro mas estão assustadas. Os adultos não conversam com elas. Nessas palestras recebo dúvidas que eu achava que não teriam – como por exemplo, se o cancro se pega? – e que provam que é urgente falar deste tema. Também acontece ter meninos com cancro nas palestras e a nossa palestra torna um bocadinho mais fácil a sua integração. Além disso, mesmo que não se identifiquem com o cancro são sempre inspirados pelo tema da superação. Apesar de me sentir muito confortável no palco e feliz com o meu percurso profissional de quase 11 anos, avalio-me como uma palestrante em constante evolução e aprendizagm. Aprendi a fazer e quando comecei, cometi erros. Aprendi com o erro e isso tornou-me numa pessoa empreendedora, sem medo de criar projetos e ter ideias.

 

 

 

A Marine também é apresentadora do programa “À Procura do True Power” e aparece mensalmente na Praça da Alegria na RTP. Qual a importância da comunicação através destes meios para promover mensagens de positividade e empoderamento?

Eu criei este projeto com um objetivo muito claro  – queria apresentar uma alternativa àquilo que geralmente é feito nos programas do day time. Normalmente, quando a pessoa diagnosticada é entrevistada nesses programas, o tema é sempre abordado com uma aura de peso e dor, com o oráculo escrito de forma dramática e um violino a tocar a música instrumental, dando aquele ambiente denso à conversa. No primeiro episódio pedi à minha convidada para partir um violino e convidei uma banda de metal que ela adorava – exatamente para mostrar este ponto: receber um diagnóstico não significa que vivamos uma vida só de dor e trevas. Este programa está disponível no youtube e mensalmente estou na praça da alegria com o meu convidado do mês para apresentar a sua história e apresentar o teaser do programa. É maravilhoso ser recebida pela Sónia e Jorge e este apoio da RTP é fundamental neste trabalho que tenho feito. Há muita gente em casa que nos vê e que não tem outra companhia a não ser a televisão e, por isso, é fulcral que os conteúdos partilhados sejam também inspiradores, positivos, cheios de esperança e não apenas cheios de dor e pena. Quero que o público conheça essas histórias e ao invés de pensar “que horror”, de certa forma se sinta capaz de lidar com um diagnóstico de cancro (caso ele surja) porque se sentiu inspirado pela força da Daniela ou o entusiasmo de vida do Simão.

No âmbito do Dia Internacional da Mulher, que mensagem gostaria de transmitir às mulheres que enfrentam os seus próprios desafios?

Crescemos a ouvir barbaridades sobre as mulheres, sobretudo a acreditar que somos más e invejosas umas com as outras. Felizmente, tenho nas minhas duas irmãs as minhas melhores amigas e sempre alimentei amizades felizes com outras mulheres – fui sempre encontrado nas mulheres a força e a identificação necessárias e considero-me uma defensora da mulher. É tão mais difícil para nós em tantas áreas, por exemplo, quando comecei no stand-up comedy tinha não só de me preocupar com o texto mas também com a forma com que me vestia. Avisaram-me logo para ser discreta na vestimenta porque senão ninguém ouviria o que eu tinha para dizer. A pressão que a sociedade nos faz em relação à imagem é opressora e violenta e eu mesma, até aos meus 25 anos, nunca tinha conseguido ir à praia com os amigos por conta dos complexos com o meu corpo. Quão violento isso é? Fico tão comovida quando me sinto representada e vejo as mulheres a alcançarem cargos que antes eram só ocupados por homens e tenho zero tolerância ao discurso machista e redutor ouvido por aí. Gostava tanto que todas as mulheres soubessem o quão nos é exigido, tivessem essa noção e consequentemente sentissem menos culpa. Não temos de chegar a todo lado, não temos todas de ser mães, não temos de viver segundo as expectativas dos outros e sobretudo, a nossa vulnerabilidade tantas vezes confundida com fraqueza, é a nossa força. E a nossa intuição o nosso super poder.

Olhando para o futuro, quais são os seus objetivos pessoais e profissionais mais ambiciosos?

Vou terminar esta segunda temporada que dura sensivelmente um ano e continuar as palestras mensais. Estes dois projetos complementam-se muito porque, com o programa dou a conhecer outras histórias e com as palestras abordo a minha, sempre com humor e na prespectiva pessoal. Os meus objetivos passam por continuar a ser feliz, a ter a qualidade de tempo que tenho para os meus, com saúde e paz de espírito. Aquilo que ontem sonhei é o que vivo hoje por isso não tenho a ambição de querer “mais e mais” de forma desmedida a qualquer custo. Não há mesmo nada que cuide mais do que a minha paz. Acho que o segredo para ser feliz é sentir-me completa com o que tenho e sou hoje. Não vivo a projetar o futuro, vivo intensamente o presente e exatamente por ser assim, por me recusar a pressionar-me e a viver em stress é que as coisas têm fluído para mim. No futuro, adorava ter a minha própria casa e viver perto da natureza. Se eu conseguir continuar a ser fiel a mim mesma e verdadeira com o que penso e sinto, tenho a certeza que continuarei a impactar positivamente.

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