O Direito da Saúde e a realização da pessoa
O direito à proteção da saúde
O direito à proteção da saúde é um direito humano e um direito fundamental. É um direito reconhecido pelo regime de proteção internacional universal das Nações Unidas e pelo regime de proteção internacional regional do Conselho da Europa, no quadro da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e da Carta Social Europeia Revista. É um direito fundamental protegido pelo Tratado de Funcionamento da União Europeia e pela Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia e, no quadro interno, pela Constituição da República Portuguesa.
São múltiplos os desafios hoje colocados à sua realização.
Importa, desde logo, garantir a igualdade no acesso a cuidados de saúde. A universalidade no acesso e o acesso independentemente da condição económica e social são instrumentos de garantia da necessária igualdade.
A doença continua a ser causa comum de discriminação, uma «categoria suspeita» de violação do princípio da igualdade. Há, pois, que combater a discriminação em razão da doença e a estigmatização da doença mental, em especial. Muitos dos doentes chegam ao sistema de saúde já com doença mental numa fase aguda, em razão de procurarem cuidados de saúde tardiamente por recearam o estigma nas escolas, nas universidades, nos locais de trabalho.
As políticas públicas plurissectoriais e a literacia em saúde, em particular, são competentes instrumentos de promoção da igualdade e de promoção da saúde. Impõe-se a articulação entre as diferentes áreas governamentais, «em particular a da educação, do trabalho, da solidariedade social e do ambiente, com as autarquias e com os organismos e entidades do setor público, privado e social» (cf. n.º 2 da Base 12 da Lei de Bases da Saúde aprovada pela Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro).
A saúde mental e a saúde em todas as políticas
O reforço das políticas de promoção da saúde mental e de prevenção da doença mental é um imperativo na realização da dignidade da pessoa humana e uma necessidade social.
Entre os grupos mais vulneráveis no quadro europeu estão presentemente os jovens, os trabalhadores precários e as pessoas que têm simultaneamente problemas de consumo de drogas e problemas de saúde mental.
O relatório Health at a Glance: Europe (Panorama da Saúde: Europa), da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económicos (OCDE) em cooperação com a Comissão Europeia, destaca, na edição de 20221, o agravamento da doença mental nos jovens. Segundo o relatório, «[n]a primavera de 2021 e 2022, cerca de 50 % dos jovens europeus manifestaram ter necessidades não satisfeitas de cuidados de saúde mental».
Como refere respetivamente a alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º da nova Lei de Saúde Mental, aprovada pela Lei n.º 35/2023, de 21 de julho, constitui fundamento da política de saúde mental, «o acesso de todas as pessoas, em condições de igualdade e de não discriminação, a cuidados de saúde mental de qualidade e no tempo considerado clinicamente aceitável». Estabelece o n.º 2 do mesmo artigo 4.º que a «abordagem de saúde pública para a saúde mental assegura a sua promoção e o bem-estar da pessoa, os cuidados de saúde, a residência e o emprego, em paralelo com a prevenção das doenças e o seu tratamento em todas as fases da vida». Devem, pois, ser adotadas medidas específicas de proteção dos jovens e de prevenção da doença mental, junto das escolas, das universidades, das famílias, na comunidade, num juízo de proximidade, e ser promovido a acesso fácil e em tempo útil a tratamento, adequado às suas necessidades.
O trabalho e a saúde mental são realidades intrincadas – o trabalho, em condições não adequadas, pode ditar ou agravar a incidência de doença mental; a doença mental pode gerar absentismo.
Sob mote do artigo 35.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, que determina que, na definição e execução de todas as políticas e ações da União, deve ser assegurado um elevado nível de proteção da saúde humana, em 9 de outubro de 2023, o Conselho adotou conclusões sobre a saúde mental e o trabalho precário2. As «conclusões apelam aos Estados-Membros, à Comissão Europeia e aos parceiros sociais para que tomem diversas medidas para melhorar as condições de trabalho, proteger a saúde mental e prevenir os riscos psicossociais no local de trabalho»3.
Entre as medidas com vista à melhoria da saúde mental no trabalho que o Conselho promove estão o combate ao emprego precário, o reforço dos sistemas públicos que protegem a saúde mental no trabalho, o apoio à investigação sobre o impacto das condições de trabalho na saúde mental, a garantia de que a saúde mental dos trabalhadores é objeto de vigilância e o apoio ao recrutamento ou à reintegração dos trabalhadores com problemas de saúde mental4 .
Entre os grupos destacados como mais vulneráveis estão as pessoas que têm simultaneamente problemas de consumo de drogas e distúrbios mentais, que «correm maior risco de desenvolver uma psicopatologia grave, de ser hospitalizadas, de sofrer uma overdose, de cometer suicídio ou de morrer prematuramente, em comparação com as pessoas que sofrem apenas de um distúrbio mental»5.
Quando a situação é de especial vulnerabilidade, os deveres de proteção do Estado são maiores.
Programa UE pela Saúde
No quadro do reforço da resiliência dos sistemas de saúde em resposta à COVID-19, foi aprovado o Regulamento (UE) 2021/522 do Parlamento Europeu e do Conselho de 24 de março de 2021 um programa de ação da União no domínio da saúde («Programa UE pela Saúde») para o período 2021-2027.
O Regulamento estabelece, designadamente, que o «Programa deverá apoiar a promoção da saúde e a prevenção de doenças e melhorar a saúde mental ao longo da vida de cada pessoa, abordando os fatores de risco e os determinantes da saúde» (Considerando (21)), reconhecendo que as necessidades na promoção da saúde mental são distintas ao longo do ciclo de vida.
Entre os objetivos fixados pelo Programa estão o apoio a «ações que visem melhorar a saúde mental, dando especial atenção aos novos modelos de cuidados de saúde e aos desafios em matéria de cuidados de saúde a longo prazo, a fim de reforçar a resiliência dos sistemas de saúde na União» (cf. alínea a) do artigo 4.º do Regulamento (UE) 2021/522). O Programa é acompanhado de um Regulamento Financeiro, sendo que, entre as ações elegíveis, estão as de apoio à melhoria da saúde mental.
Aqui se realiza a compreensão de que o financiamento da saúde é um investimento e não um gasto. Basta atender aos custos diretos com cuidados de saúde e programas de segurança social e custos indiretos no mercado de trabalho para gerar tal compreensão. De acordo com «o relatório “Panorama da saúde” da OCDE (2018), a saúde mental custa aos 27 países da UE e ao Reino Unido pelo menos 600 mil milhões de euros, ou seja, mais de 4 % do PIB por ano»6. Acima de tudo importa atender à proteção das pessoas e considerar que «Mais de uma em cada seis pessoas nos países da UE (17,3%) tinha um problema de saúde mental em 2016»7.
O reforço das competências em matéria de saúde constitui atuação que resulta do reconhecimento de que a saúde «é uma preocupação claramente partilhada por todos os europeus e que, portanto, inevitavelmente fará parte cada vez mais das políticas europeias comuns»8.
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- Cf. versão integral do relatório disponível em https://health.ec.europa.eu/state-health-eu/health-glance-europe_pt
- Vide Conselho Europeu, Conselho da União Europeia – Saúde Mental, in https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/mental-health/#work%20council
- Cf. as conclusões do Conselho disponíveis em https://www.consilium.europa.eu/pt/meetings/epsco/2023/10/09/
- Cf. informação disponível em https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/mental-health/#work%20council
- Vide Conselho Europeu, Conselho da União Europeia – Saúde Mental, in https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/mental-health/#work%20council
- Cf. https://www.oecd.org/health/health-systems/OECD-Factsheet-Mental-Health-Health-at-a-Glance-Europe-2018.pdf
- Cf. https://www.healthdata.org/research-analysis/gbd
- Tradução nossa, livre, do texto de SACHA GARBEN, “Treaty on the Functioning of the European Union, Part Three: Title XIV Public Health, Article 168, Comentary”, in The EU Treaties and the Charter of Fundamental Rights A Comentary, edit by MANUEL KELLERBAUER, MARCUS KLAMERT, JONATHAN TOMKIN, Oxford, Oxford University Press, 2019, p. 1455.