Parteiras: pilares invisíveis de um sistema que precisa delas mais do que nunca

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Assinalar o Dia Internacional da Parteira, a 5 de maio, é mais do que um gesto simbólico: é um convite à reflexão crítica sobre o lugar que os Enfermeiros Especialistas em Saúde Materna e Obstétrica (EESMO) ocupam no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Sim, porque estamos a falar de profissionais com formação altamente diferenciada, que integram saber técnico-científico e competências humanas num dos momentos mais complexos e sensíveis da vida: o nascimento.

Na prática, a intervenção das parteiras é determinante na promoção de cuidados centrados na mulher, baseados na evidência científica e na humanização do parto. No entanto, persistem barreiras políticas, organizacionais e culturais que limitam o pleno exercício da sua autonomia e visibilidade. Em diversos contextos, observa-se uma subutilização das suas competências, fruto de modelos biomédicos próprios do século passado.

 

 

Enf.ª Marta Inácio, EESMO e Delegada Sindical da ASPE

 

 

O debate torna-se ainda mais urgente à luz da atual instabilidade dos serviços de urgência obstétrica em Portugal. Nos últimos anos, o encerramento temporário ou prolongado de diversas urgências obstétricas e ginecológicas expôs fragilidades estruturais do SNS e acentuou desigualdades no acesso aos cuidados. Atualmente, as grávidas são, muitas vezes, obrigadas a deslocar-se dezenas de quilómetros, em situações de trabalho de parto iminente, sem garantias de acompanhamento contínuo e profissionalmente adequado.

Paradoxalmente, apesar da existência em Portugal de EESMO com certificação profissional para exercer com autonomia em qualquer país europeu, não foram criadas soluções que aproveitassem este capital humano. Em contraciclo, continuamos a aplicar medidas que centralizam os cuidados em função da disponibilidade médica e marginalizam as respostas de proximidade, ignorando que o nascimento e o parto são processos naturais que na maioria dos casos, apenas necessitam de vigilância e apoio dos EESMO.

Neste cenário, mais grave ainda é a recente obrigatoriedade de contacto com a linha SNS 24 Grávida antes da ida à urgência hospitalar, o que representa mais um entrave na acessibilidade direta aos cuidados de saúde no SNS. Este modelo, que tem como finalidade mitigar o encerramento das urgências obstétricas, ao invés de simplificar e humanizar o acesso aos cuidados de saúde, reforça desigualdades e compromete a confiança da mulher no SNS.

Este contacto telefónico prévio, frequentemente moroso e tecnicamente limitado, é conduzido por enfermeiros generalistas, sem formação em saúde materna e obstétrica, e exige das grávidas competências cognitivas e de controlo emocional que nem sempre estão presentes, sobretudo em situações que geram níveis elevados de ansiedade, insegurança ou dor. Ao não considerar este fator o Governo coloca em risco as grávidas e bebés e promove a ineficiência da resposta do SNS, como se demonstra já pelo aumento considerável de partos em ambulâncias ou fora das instalações hospitalares!

Ao invés, a triagem telefónica se fosse feita por EESMO, poderia fazer a diferença no encaminhamento da grávida para o nível de cuidados que ela e o bebé necessitam, mas também na informação clínica transmitida à unidade de saúde que a vai receber.

 

 

 

 

Outro ponto crítico prende-se com a autonomia reconhecida, mas não praticada. A legislação portuguesa e a Ordem dos Enfermeiros conferem aos EESMO competências autónomas para acompanhar e vigiar gravidezes de baixo risco, trabalhos de parto de baixo risco, realizar partos eutócicos e prestar cuidados especializados no pós-parto. No entanto, na prática, a sua autonomia é frequentemente desvalorizada ou suprimida por dinâmicas hierárquicas que mantêm o poder médico como centro da decisão, mesmo em contextos onde a intervenção médica não é necessária. Esta subutilização dos recursos especializados compromete a eficiência dos cuidados e perpetua uma cultura institucional centrada no controlo, em detrimento da confiança e da parceria com as mulheres.

A experiência internacional comprova que modelos liderados por parteiras/EESMO, com continuidade de cuidados e proximidade territorial, apresentam melhores indicadores de Saúde Materna, menor número de intervenções desnecessárias e maior satisfação por parte das utentes. Portugal dispõe de profissionais altamente qualificados e motivados.

 

 

 

 

No entanto, falta a vontade política e organizacional para os integrar nas respostas estruturais.

Ora, este conjunto de desafios revela não apenas falhas operacionais, mas uma visão fragmentada e incoerente da Saúde Materna e Obstétrica, que ignora a abordagem centrada na mulher, a importância da proximidade nos cuidados de saúde e o papel transformador dos EESMO.

Diante dos desafios expostos, propõem-se algumas linhas de ação prioritárias nas políticas de Saúde Materna e Obstétrica, tais como:

1 – Garantir a autonomia efetiva dos EESMO no seu contexto de trabalho, com respaldo institucional e organizacional;

2 – Reformular a triagem obstétrica através da Linha SNS 24 / SNS Grávida, garantindo a sua operacionalidade exclusiva ou maioritariamente com EESMO, tornando-a acessível e funcional para todas as grávidas;

3Reorganizar e criar unidades lideradas por EESMO em Portugal, especialmente em locais onde os encerramentos de urgências afetam o acesso e a equidade aos cuidados;

4 – Implementar modelos de continuidade de cuidados, com acompanhamento desde a pré-conceção, gravidez, parto e pós-parto pela mesma profissional;

5Incluir os EESMO nos processos de decisão política na área da Saúde Materna e Obstétrica, reconhecendo o seu contributo técnico, ético e social.

Em síntese, a Saúde Materna em Portugal enfrenta desafios que não decorrem apenas da escassez de recursos, mas da ausência de uma visão integrada e coerente. A mudança necessária não é apenas técnica, mas política e cultural. Requer o abandono de modelos paternalistas, a abertura à interdisciplinaridade e o compromisso com um sistema de saúde que valorize a autonomia profissional dos EESMO, a proximidade nos cuidados assistenciais e o respeito pelos direitos das mulheres.

Por isso, devemos encarar o Dia Internacional da Parteira como catalisador de uma transformação estrutural: uma mudança que valorize a competência, a proximidade e a humanização como pilares dos cuidados em Saúde Materna.

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