O erro não é uma falha, é uma oportunidade para aprender. Albert Einstein

A escassez de profissionais de saúde, nomeadamente de enfermeiros, é um problema global a que Portugal não é exceção. Se é verdade que a emigração ou o abandono da profissão eram fenómenos já conhecidos e para o qual a ASPE tem vindo a sensibilizar os diferentes governos e empregadores – também é verdade que há um fator mais recente que pode revelar-se decisivo para a insustentabilidade do SNS: redução dos enfermeiros a “braçais”.
De facto, invertendo uma tendência estável ao longo de décadas, os cursos de Enfermagem são, cada vez mais, uma escolha menos atrativa para os nossos jovens. Esta tendência não é fruto do acaso. Há a considerar os interesses e os objetivos de vida das novas gerações de profissionais, mas também as implicações de políticas que, ao longo do tempo e na atualidade, desvalorizam a essência e a complexidade da Enfermagem, precarizam os vínculos laborais, pagam baixos salários e – como se isso não chegasse – atropelam os seus direitos constitucionais e legalmente reconhecidos.
De acordo com o mais recente Health at a Glance, da OCDE (2024), “Mais de um terço dos médicos e um quarto dos enfermeiros da UE têm mais de 55 anos e deverão reformar-se nos próximos anos. Ao mesmo tempo, o interesse dos jovens pelas carreiras na área da saúde está a diminuir, com a Enfermagem a cair em mais de metade dos países da UE entre 2018 e 2022”, o que torna mais difícil o desejado rejuvenescimento da profissão e a cabal substituição da força de trabalho por jovens enfermeiros.
Ora, em 2022, o número de recém-licenciados em Enfermagem, por 100 mil habitantes em Portugal, foi inferior ao número alcançado 10 anos antes (26 versus cc 30) e significativamente abaixo da média da União Europeia (37,5), que até subiu ligeiramente no mesmo período.
O mesmo documento refere que “em média, nos países da UE, a remuneração dos enfermeiros hospitalares em 2022 era cerca de 20% superior ao salário médio de todos os trabalhadores em cada país”. Contudo, na “Finlândia, França, Portugal, Suécia e Itália, os enfermeiros não ganham mais do que o salário médio de todos os trabalhadores”. Mais: “Em 2022, os enfermeiros do Luxemburgo e da Bélgica tinham níveis de remuneração cerca de três vezes superiores do que os que trabalham em Portugal e na República Eslovaca”.
Saliento outro facto relacionado com a desvalorização destes profissionais. Na maioria dos países analisados pela OCDE, a remuneração dos enfermeiros aumentou na década que antecedeu a pandemia por COVID-19. Mas nessa altura, Portugal era um dos países a “ir em sentido inverso”, a par com a Grécia, Itália, Finlândia e Reino Unido. A situação não se alterou desde 2020 até 2024 porque, apesar de alguma progressão nas remunerações, a inflação e o consequente aumento do custo de vida mantiveram o crescimento negativo das remunerações (-0,9%).
Se acrescentarmos que em 2025 a diferença salarial entre um enfermeiro e um especialista – que pagou na totalidade o seu mestrado/especialidade – é de apenas 52,63€, percebe-se a perda do poder de compra, a redução da atratividade da carreira e até o reforço da emigração como uma opção de vida válida para os enfermeiros portugueses.
Com este panorama, não surpreende que os cursos de Enfermagem tenham perdido atratividade. Há cerca de dois anos, registou-se uma quebra significativa nas primeiras opções de candidatura a estes cursos. Os estudantes estão cada vez mais conscientes do que os espera: um futuro profissional pouco valorizado, mal pago e com fracas perspetivas de evolução. Num país onde os custos de vida crescem a olhos vistos, especialmente nas grandes cidades, o salário de um enfermeiro recém-licenciado torna-se, muitas vezes, insustentável.
Enfermeiros “tarefeiros” e Lei da Greve
Se é certo que a emigração e o abandono da profissão foram mais precoces na Enfermagem – a emigração tornou-se especialmente significativa a partir dos anos da Troika –, também é verdade que sobre a atratividade da profissão, os decisores políticos poderiam ter aprendido com os erros cometidos com os médicos.
O mesmo Health at a Glance 2024 revela que, ao contrário da tendência europeia, Portugal tem vindo a aumentar o número de médicos que não possuem uma especialidade (vulgo “clínicos gerais”). Esta realidade deriva de vários fatores, mas um deles resulta da crescente aposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS) no regime de “médicos tarefeiros”, sobretudo para assegurarem escalas dos serviços de Urgência.
Estes médicos, quer seja em nome próprio ou através de empresas de trabalho temporário, prestam serviços em várias unidades. Têm menos formação e menos competências que os médicos vinculados ao SNS, mas recebem mais por menos horas. Assim, promoveu-se a prestação de serviços no SNS por parte dos médicos, que sem vínculo, decidem quando querem ou não querem trabalhar e a que preço. Logo, o SNS está cada vez mais refém dos “médicos tarefeiros”!
E ao que parece, relativamente aos enfermeiros, os decisores políticos e os gestores das unidades de saúde não aprenderam com esse erro. Em Lisboa onde a carência destes profissionais é maior, já se encerram camas e serviços por falta de enfermeiros. E, em desespero, já se colmatam carências pontuais com recurso a “plataformas de distribuição” de enfermeiros pagos à hora.
Temo que o SNS tendencialmente gratuito e universal, pilar da democracia e dos Estado Social, como foi idealizado e criado, se torne numa “miragem”!
Mais alarmante, contudo, é a forma como o Estado, em vez de corrigir estes erros, prefere avançar com a possibilidade de atacar os direitos dos trabalhadores presentes na Constituição da República e no Código do Trabalho.
As declarações do então e atual Primeiro-Ministro, bem como de outros membros do anterior Governo em plena campanha eleitoral, vieram reforçar as mensagens e os comportamentos arrogantes e discriminatórios dos meses anteriores em relação a alguns sindicatos.
Os discursos moralistas em defesa dos cidadãos que sofrem com os efeitos das greves apenas pretendem ocultar uma ofensiva legislativa que limite o direito à greve, que aumente o limite anual das horas extraordinárias obrigatórias, que legitime o regime de adaptabilidade e as bolsas de horas individuais. Práticas ilegais habituais que atualmente já estão instaladas, para compensar a carência crónica de profissionais no SNS!
A interligação entre estes fenómenos é evidente: o desinvestimento na saúde, a precarização do trabalho e a tentativa de silenciar a luta laboral fazem parte da mesma lógica de desvalorização do serviço público. Em vez de reforçar o SNS e proteger os seus profissionais, opta-se por soluções de curto prazo e por restringir direitos históricos que custaram décadas de conquista social.
A pergunta que se impõe é: Queremos um SNS assente em contratos à tarefa e profissionais descartáveis? Ou um SNS sólido, com equipas estáveis, respeitadas e com direitos assegurados?
A resposta não pode ser apenas política — é também ética e moral.