Enxaqueca: dos desafios diagnósticos aos terapêuticos

As queixas de dor de cabeça (cefaleia) acompanham a Humanidade desde os seus primórdios. Há descrições de tratamento para cefaleias no Egipto Antigo e são ainda mais remotas as trepanações (orifícios que se faziam no crânio), com vista a permitir a fuga dos maus e atormentadores espíritos, causadores do sofrimento e da dor de cabeça. A enxaqueca é talvez a mais conhecida das cefaleias e é uma doença neurológica debilitante, que afeta milhões de pessoas em todo o mundo. Caracterizada por dores de cabeça intensas e recorrentes, muitas vezes acompanhadas por náuseas, vómitos e sensibilidade à luz e ao som, a enxaqueca pode impactar significativamente a qualidade de vida de quem dela sofre. No entanto, apesar da sua prevalência, o diagnóstico e o tratamento da enxaqueca continuam a apresentar desafios consideráveis.

 

 

 

Dr. Filipe Palavra, Médico Neurologista, Unidade Local de Saúde de Coimbra Assistente Convidado, Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra Presidente da Sociedade Portuguesa de Cefaleias

 

 

 

Desafios Diagnósticos

Um dos maiores obstáculos no diagnóstico da enxaqueca é a sua natureza variável e complexa. Os sintomas podem diferir amplamente de uma pessoa para outra e até mesmo de uma crise para outra, no mesmo indivíduo. Além da dor de cabeça pulsátil e intensa, alguns pacientes podem experimentar auras visuais (como pontos brilhantes), sensitivas (como sensações de “formigueiro” em alguma parte do corpo) ou motoras (falta de força), enquanto outros não têm auras.

Além disso, a enxaqueca pode ser confundida com outros tipos de dores de cabeça, como sejam a cefaleia tipo tensão e a cefaleia em salvas. A falta de exames laboratoriais ou de imagem específicos para diagnosticar a enxaqueca significa que os médicos dependem de uma descrição detalhada dos sintomas, aspeto absolutamente fundamental para o sucesso de qualquer intervenção clínica – sem um diagnóstico correto, é difícil implementar um tratamento adequado e, dessa forma, aumentar a qualidade de vida da pessoa com enxaqueca.

 

Desafios Terapêuticos

O tratamento da enxaqueca também está repleto de desafios. Embora existam várias opções terapêuticas disponíveis, nem todas funcionam igualmente bem para todos os pacientes. Os tratamentos podem ser divididos em duas categorias principais: tratamento abortivo, que visa aliviar os sintomas durante uma crise de enxaqueca, e tratamento preventivo, que tenta reduzir a frequência e a gravidade das crises.

Os medicamentos abortivos incluem analgésicos comuns, como o ibuprofeno e o paracetamol, além de medicamentos específicos para enxaqueca, como os triptanos. No entanto, é importante vincar que a utilização excessiva de analgésicos pode contribuir para criar um ciclo vicioso de dor, muito difícil de quebrar. No grupo dos tratamentos preventivos incluem-se medicamentos desenvolvidos com outras indicações terapêuticas, mas que se verificou terem capacidade de reduzir a intensidade e a frequência das crises de enxaqueca: anti-hipertensores, antidepressivos, fármacos anti-crises epiléticas e mesmo toxina botulínica são utilizados com este fim, embora possam ter efeitos colaterais significativos, sendo que nem todos os pacientes respondem de forma favorável. Esta lacuna terapêutica foi o mote para se desenvolverem medicamentos mais específicos e desenhados em função do conhecimento que foi surgindo sobre a fisiopatologia da enxaqueca. Assim surgiram os anticorpos monoclonais dirigidos contra o peptídeo relacionado com o gene da calcitonina (CGRP) e o seu recetor, assim como as pequenas moléculas que antagonizam esse mesmo recetor, os gepants, todos presentes no nosso mercado.

 

Enfrentando os Desafios

Para uma gestão clínica eficaz, na enxaqueca, é crucial que os pacientes colaborem com os seus médicos, permitindo a construção de um plano de tratamento personalizado. Manter um diário das crises de enxaqueca pode ajudar a identificar gatilhos específicos e a medir a eficácia dos tratamentos implementados. Além disso, estratégias não farmacológicas, como mudanças na dieta, prática regular de exercício físico, técnicas de relaxamento e controlo dos eventuais desencadeantes, podem desempenhar um papel importante e com impacto na qualidade de vida da pessoa com enxaqueca.

Finalmente, é essencial sensibilizar toda a população para o peso social da enxaqueca. Diagnosticar e tratar melhor só pode ser positivo, gerando ganhos em saúde que ultrapassam os custos diretos dessa intervenção. A enxaqueca é muito mais do que uma dor de cabeça e tem um impacto muito maior na nossa vida coletiva do que, à partida, poderíamos considerar. É possível reduzi-lo e o caminho passa seguramente por antecipar o acesso à inovação terapêutica que, felizmente, existe.

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