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Os Paradoxos do encerramento das urgências obstétricas

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Os Paradoxos do encerramento das urgências obstétricas: O SNS paga centenas de milhares de euros a médicos e mantem os serviços a funcionar à custa de enfermeiros especialistas pagos como generalistas!

Multiplicam-se os encerramentos temporários de urgências obstétricas e ginecológicas em todo o país e, em consequência direta, cresce o número de nascimentos sem assistência profissional, nas ambulâncias, na rua e até nos átrios dos hospitais! Verdadeiros milagres da natureza que desafiam os discursos inflamados que exigem equipas tipo com 3, 4 ou 5 médicos obstetras para manter uma urgência a funcionar.

Uma realidade que desafia a vergonha e a hipocrisia dos argumentos da visão medicalizada do trabalho de parto, que mantem as mulheres e os bebés abandonados à sua sorte, sem acesso e sem resposta profissional em tempo útil, em nome de falsos princípios éticos e poderes corporativos.

A baixa taxa de mortalidade materna e neonatal, a elevada taxa de satisfação de todos os intervenientes e o reconhecimento social de jubilo propalado pelas notícias dos nascimentos ajudados por bombeiros, polícias e até avós, demonstra que o trabalho de parto é um processo natural de início espontâneo e a forma mais segura de nascimento.

A pergunta que se impõe: não estariam estas mulheres mais seguras, não correriam estes bebés menos riscos se o nascimento ocorresse numa maternidade próxima, com enfermeiros especialistas de saúde materna e obstétrica como acontece nos países mais ricos da europa?

 

Lúcia Leite, Presidente da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros

 

Mas não, a justificação é sempre a mesma – não há médicos suficientes para assegurar as escalas! E os discursos mantêm-se: é preciso concentrar as urgências obstétricas em urgências regionais para se assegurar que os médicos continuam a trabalhar em “bando”, com o controlo total sobre os resultados, subalternizando os enfermeiros e escondendo da sociedade que são eles, os enfermeiros, que sempre asseguraram autonomamente 80% dos partos normais!

Esta narrativa esconde ainda uma contradição profunda, um verdadeiro paradoxo institucional.

Enquanto se fala na “falta de obstetras”, os serviços continuam a funcionar graças a profissionais que o sistema insiste em desmerecer: os Enfermeiros Especialistas em Saúde Materna e Obstétrica (EESMO). Com 6 anos de formação técnica, científica e humanista, ao nível de mestrado, certificados para exercer em qualquer país europeu, têm sido a verdadeira coluna vertebral da assistência nos serviços de urgência e nas salas de parto, que as políticas de saúde insistem em desconsiderar.

São os EESMO que garantem a continuidade dos cuidados, asseguram a vigilância ativa da grávida e monitorizam o trabalho de parto, realizam partos normais, tomam decisões clínicas, acompanham a mulher e o recém-nascido com dedicação constante, 24 horas por dia, 365 dias por ano. No entanto, permanecem ausentes do discurso público, político e mediático. Reconhecer o seu papel implicaria admitir que o sistema depende, de facto, desta mão de obra altamente especializada.

Aqui o paradoxo torna-se gritante, apesar do papel incontornável, as maternidades estão asseguradas por muitos EESMO que estão contratos como enfermeiros de cuidados gerais, sem que as instituições lhes atribuam a categoria profissional que corresponde às funções que exercem e um salário compatível com as responsabilidades que assumem.

Os números falam por si. Do levantamento realizado em agosto deste ano pela Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros – ASPE, junto de 18 maternidades, de Trás os Montes ao Algarve, em média 12% dos EESMO que mantêm as maternidades abertas estão contratados e são remunerados como enfermeiros de cuidados gerais.

 

 

Dois exemplos:

O Centro Materno Infantil do Norte (CMIN) cujo diretor é o Prof. Dr. Caldas Afonso, que preside desde julho de 2024 à Comissão Nacional da Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente, tem uma equipa de 117 EESMO a exercer funções especializadas, mas apenas 89 estão integrados na categoria de Enfermeiro Especialista e remunerados como tal. Ou seja, 23,9% (28 EESMO) – quase um quarto da equipa – pagou o seu mestrado para obter o título da Ordem dos Enfermeiros que lhes permite exercer as suas competências especializadas em Saúde Materna e Obstétrica e disponibiliza, gratuitamente, esse conhecimento e experiência para que os serviços se mantenham a funcionar!

Já a instituição que concorre diretamente com o CMIN, a ULS S. João, EPE, não está melhor! No mesmo período, dos 62 EESMO que integram a equipa da maternidade, 16 exercem as competências especializadas com salário de enfermeiros de cuidados gerais, ou seja 24%.

Clarificando, o SNS depende do trabalho destes profissionais, mas escolhe não lhes pagar nem reconhecer o estatuto que lhes é devido e ainda assim os enfermeiros não encerram urgências, nem serviços!

É, mais cómodo vender à opinião pública a narrativa da “falta de médicos” do que assumir a exploração silenciosa de uma força de trabalho qualificada, disponível e mais barata. Trata-se, no fundo, de uma forma de exploração institucionalizada, isto é, exige-se desempenho altamente qualificado, mas recusa-se a valorização correspondente.

O modelo assistencial implantado no SNS não é apenas injusto, é insustentável! Mantém-se ancorado numa lógica hierárquica, subjugada ao domínio hegemónico da classe médica, que subestima a enfermagem especializada e recusa evoluir para modelos colaborativos e interdisciplinares de cuidados obstétricos:  modelos que já são realidade em diversos países há décadas.

No Reino Unido, nos Países Baixos, na Suécia ou no Canadá, os EESMO são figuras centrais no acompanhamento da gravidez e do parto. Têm autonomia clínica, estatuto profissional reconhecido e são frequentemente a porta de entrada preferencial das mulheres para os cuidados em saúde materna. Portugal, pelo contrário, permanece preso a um modelo médico-centrado que trata os EESMO como recursos descartáveis em vez de profissionais estratégicos. Esta resistência à mudança não só desmotiva estes especialistas, como empobrece o sistema, penaliza as mulheres e perpetua desigualdades evitáveis.

Não haverá verdadeira reforma na saúde materna sem a integração plena e digna dos EESMO no sistema de saúde. Isso implica:

  • Reconhecê-los formalmente como especialistas, com todos os direitos inerentes à sua função;
  • Valorizar a sua formação avançada e experiência clínica;
  • Assegurar a sua participação ativa nas decisões organizacionais;
  • Promover uma verdadeira integração de cuidados, com equipas obstétricas interdisciplinares e colaborativas, onde cada profissional contribua segundo as suas competências específicas, em Unidades Locais de Saúde (ULS) organizadas em prol dos melhores interesses dos beneficiários dos cuidados de saúde.

Não se pode continuar a encerrar urgência por “falta de obstetras”, deixando as grávidas desprotegidas e ignorando que dentro dos serviços existem EESMO e médicos obstetras que ficam impedidos de prestar cuidados à população.

Os EESMO não podem continuar a ser tratados como mão de obra invisível e o seu potencial não pode ser desperdiçado.

Os exemplos aqui apresentados refletem a realidade de muitas equipas em todo o país e devem servir de ponto de partida para um debate aberto, técnico e ético sobre o modelo de cuidados materno-infantis que queremos para o futuro do Sistema de Saúde Português e sobre a forma como se desbaratam os preciosos Enfermeiros Especialistas.

Nos próximos anos um médico obstetra será um “bem precioso”, raro e caro, por isso deve estar dedicado ao diagnostico e tratamento da doença, à monitorização das situações patológicas complexas e à atividade cirúrgica que apenas estes profissionais podem realizar.

O futuro do SNS, a sua sustentabilidade e eficiência dependerá sempre do trabalho colaborativo dos vários profissionais de saúde, com respeito pelas suas áreas próprias de intervenção, constituindo equipas multiprofissionais colaborativas e completares, onde os enfermeiros especialistas sejam reconhecidos, valorizados e integrados como promotores da saúde materna, obstétrica e infantil em Portugal.

 

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