A linha SNS24 foi, em tempos, uma linha de atendimento exclusivo por enfermeiros. Profissionais com capacidades técnicas, experiência clínica e conhecimento científico, preparados para avaliar e triar situações complexas – quer na comunidade, em meio hospitalar, ou através de contacto telefónico. Esse era o princípio: enfermeiros a fazer enfermagem. Mas, em Portugal, a regra é simples: aquilo que funciona, mexe-se até deixar de funcionar.
Apesar das pós-graduações, mestrados e especialidades que tornam melhores os nossos enfermeiros, nem sempre esses percursos são reconhecidos. Na linha, não é diferente. Pelo contrário: os profissionais trabalham em condições precárias, sem formação contínua adequada, com remuneração injusta e avaliados por quantidade e não pela qualidade. Resultado? Faltam enfermeiros. E em vez de se investir naquilo que é necessário – atrair e fixar especialistas – o Estado opta pelo atalho fácil: meter outros profissionais a desempenhar funções que não lhes competem.

Conforme o Despacho n.º 13807/2024, publicado no âmbito do Plano para a Resposta Sazonal em Saúde no inverno 2024/2025, foi autorizada, a título excecional e transitório, a inclusão de farmacêuticos nas equipas da Linha SNS24 (mais de 500 elementos foram integradados, informação publicitada pela Ordem dos Farmacêuticos), com funções associadas à triagem, aconselhamento e encaminhamento de utentes, em conjunto com recém-licenciados em enfermagem e medicina. A justificação foi simples: tapar buracos em períodos de maior pressão, nomeadamente no inverno, em sintomas respiratórios e da orofaringe. No entanto, nessa altura, qualquer alteração fora do algoritmo tinha de ser validada por um supervisor enfermeiro. Era uma exceção justificada!
Porém, as ideias criativas não ficaram por aqui, confrontado com a crise nas urgências e necessidade de reduzir a afluência, mais uma vez, o Governo empurra para a linha SNS24 um projeto piloto intitulado “Ligue Antes, Salve Vidas”, sem olhar para as condições humanas necessárias para o assegurar. Um projeto que já se estendeu a 27 das 39 Unidades Locais de Saúde (ULS) sem reforçar meios humanos e equipamentos, sem ouvir os profissionais que asseguram o atendimento diário, sem medir as consequências. Atira-se para a frente, como sempre, para cumprir a propaganda e o calendário político.
E quem paga a fatura? Os cidadãos que necessitam de respostas desesperadamente e os profissionais, esmagados por um sistema que já não aguenta mais!
A verdade é dura, mas tem de ser dita: o Serviço Nacional de Saúde está de rastos, esgotado, uma completa vergonha nacional. Fingir o contrário é insultar não só os enfermeiros, mas todo o povo português que diariamente sente na pele a falência de um sistema que devia protegê-lo.
Mas em Portugal, todos sabemos: nada é mais definitivo do que uma “medida provisória”.
No início de 2025, esses mesmos farmacêuticos foram “promovidos” a seniores, o que significa que estão capazes de triar todos os sintomas, incluindo situações de gravidez, e com autonomia para alterar a avaliação clínica inicial. Uma decisão gravíssima, que colocava em risco a segurança da população e usurpava funções legalmente reservadas a enfermeiros e médicos. Foi revogada, na sequência da intervenção da Ordem dos Enfermeiros, após os enfermeiros da linha manifestarem preocupação. É verdade, mas apenas porque era véspera de eleições!
Coincidência ou não, a atual Ministra da Saúde é farmacêutica. Depois de reeleita, manteve-se em funções e agora quer dar um passo perigoso: a partir de setembro, os farmacêuticos deixarão de ter apenas o papel que sempre tiveram no SNS24 – o apoio no aconselhamento sobre medicamentos – para passarem a desempenhar também outras funções: de triagem, encaminhamento e aconselhamento clínico de todos os utentes. Ou seja, vão ocupar o lugar dos enfermeiros, ultrapassando aquilo que inicialmente foi proposto como exceção e provisório, para se transformar numa decisão definitiva, e a justificação apresentada é quase insultuosa: basta “seguir o algoritmo” e transmitir a decisão final como se isso fosse sinónimo de segurança total para o utente. Como se a vida das pessoas pudesse ser reduzida a um conjunto de cliques, dispensando conhecimento clínico, experiência profissional e pensamento crítico.
E convém não esquecer que segundo o enquadramento legal da profissão de farmacêutico não se incluem nos atos próprios da profissão, a prestação de cuidados individualizados, envolvendo as etapas de avaliação, diagnóstico, planeamento, implementação e evolução dos cuidados, como é estabelecido para os enfermeiros. Apenas está reconhecido como ato farmacêutico a prestação de informação e aconselhamento sobre medicamentos, dispositivos médicos, produtos fitofarmacêuticos, produtos cosméticos e outros produtos ou outras tecnologias de saúde.
O absurdo atinge o auge na linha SNS Grávida. Esta linha deveria ser composta, preferencialmente, por enfermeiros especialistas em saúde materna e obstetrícia, devidamente preparados para avaliar o risco clínico, triar grávidas e recém-nascidos e orientar para o serviço mais adequado à situação. Mas, em vez disso, o Ministério quer colocar farmacêuticos a atender grávidas que pensam estar a falar com profissionais qualificados nesta área. Isto é enganar as pessoas. Isto é brincar com a vida das mães e das nossas crianças.
A comunidade de enfermagem está profundamente preocupada. E não se trata de uma guerra corporativa. Trata-se de segurança. Não queremos, nem vamos ver, enfermeiros a vender medicamentos nas farmácias ou a preparar fármacos em laboratório. Da mesma forma, não aceitamos farmacêuticos a desempenhar funções de triagem clínica no SNS24. Cada macaco no seu galho!
A saúde dos portugueses não é um laboratório de experiências políticas, nem uma selva de macacos a competir pelo mesmo galho!
E como se não bastasse a confusão criada com farmacêuticos a ocupar funções que não lhes competem, temos ainda o absurdo dos administrativos. Depois de um processo de triagem clínica feito por enfermeiros, muitas chamadas acabam entregues a administrativos sem formação em saúde. O resultado? Pessoas que deveriam ser avaliadas em serviço de urgência são empurradas para teleconsultas que muitas vezes nem chegam a acontecer pelos constrangimentos técnicos. Outras ficam a circular de urgência em urgência, sem que ninguém assuma responsabilidade. É este o retrato cru do sistema: profissionais qualificados a serem desautorizados, doentes perdidos num labirinto de burocracia, e administrativos a decidir destinos que não lhes cabem.
O Ministério da Saúde deve parar de improvisar com a vida dos portugueses e criar condições para que os enfermeiros generalistas, os enfermeiros especialistas (de todas as áreas) integrem a linha, com dignidade, para dar resposta qualificada à população.
Pela saúde das nossas grávidas e dos seus bebés, pela segurança de todos os utentes, SEM EXCEÇÃO, todos devemos lutar por uma linha SNS24 que seja, de facto, aquilo para que nasceu: uma linha de triagem clínica feita por enfermeiros devidamente qualificados, com as ferramentas necessárias para proteger e encaminhar cada cidadão para a resposta mais próxima e adequada à sua situação clínica.




