
Cada instituição tem atualmente uma Comissão de Qualidade e Segurança do Doente e um Gabinete de Gestão do Risco, sendo estas estruturas as responsáveis por verificar os corretos procedimentos de segurança e as primeiras a ser notificadas internamente pelos diversos profissionais quando há dúvidas ou não conformidades nos procedimentos. Após a notificação segue-se naturalmente a investigação, elaboração de relatório e entrega de sugestões de melhoria aos Conselhos de Administração.
As reportagens emitidas nos últimos meses, pela comunicação social, de que são exemplo a do canal NOW, no programa “Repórter Sábado”, do dia 21 de setembro de 2024, e a reportagem de 8 de março da CNN, da autoria do jornalista Carlos Enes, intitulado “A taxa de infeções cresceu brutalmente no Hospital da Prelada”, que acusa o Conselho de Administração de ignorar os avisos da médica do Programa de Prevenção e Controlo de Infeção e das Resistências aos Antimicrobianos (PPCIRA), não podem deixar ninguém indiferente.
Nestas reportagens não foi abordado se os procedimentos internos foram ou não cumpridos no que respeita à notificação às Comissões (…) e aos Gabinetes (…) de Gestão do Risco, porque claramente não era esse o foco. O foco centrou-se na denúncia das irregularidades por médicos e nas consequências do adiamento das cirurgias por incumprimento no processo de reprocessamento de material cirúrgico que foi efetuado por empresas externas. Ninguém explorou se as cirurgias deveriam ter sido adiadas se não houvesse material suplementar para fazer face às inconformidades detetadas! Falou-se sim na pressão que os serviços centrais de esterilização sofrem para aprontar o material mas não foi referido quem faz essa pressão diariamente. Temos, portanto, aqui uma série de problemas que esperamos que estas reportagens tenham permitido levantar o véu sobre um aspeto central, raramente referido, que é o coração de qualquer serviço de saúde – os serviços centrais de esterilização, em que a tendência para externalizar é crescente dado os problemas diários que se levantam nas instituições e o elevado investimento necessário para manter níveis de qualidade e segurança em todo o processo.
Vivemos uma época em que o prioritário é aumentar a produção cirúrgica mas sem investimento paralelo na adequação dos meios técnicos e humanos para o êxito deste propósito. Quanto maior a rotatividade do material e equipamento, maior é a probabilidade de deterioração num curto espaço de tempo. Ninguém assume este facto!
Investir tem custos imediatos é verdade, mas também ninguém evidencia os custos do não investimento. O silêncio é o status a que nos habituamos. Denunciar, notificar, é difícil sobretudo na área da saúde pelos riscos de coação porque a tendência é procurar culpados e não a de perceber que há um problema que é necessário resolver, sobretudo quando o custo é elevado.
Nas referidas reportagens, ninguém falou na falta de regulamentação e inspeção nesta área.
Ninguém falou que o aumento do número de cirurgias implica logicamente aumentar o número do instrumental cirúrgico disponível e fardamento. Implica mais carga de trabalho para os operadores dos serviços de reprocessamento de dispositivos médicos reutilizáveis.
Todo o material e equipamento clínico têm um ciclo de vida próprio, ultrapassá-lo é correr riscos! Os materiais ao passarem pela fase de inspeção do reprocessamento deveriam ser retidos sempre que se apresentassem deteriorados. Este deveria ser um princípio norteador a praticar. Mas não, o importante é continuar a aumentar a produção mesmo aumentando os riscos e colocando em causa a segurança dos doentes.
Em Portugal, as orientações sobre esta matéria são de 2001, publicadas no “Manual de normas e procedimentos para um serviço central de esterilização” da DGS. Um guia orientador para as instituições de saúde, mas que dada a evolução do conhecimento deveria já ter sido revisto e paralelamente ser emitidas normas para as instituições de saúde.
Grandes desafios se têm colocado nesta área como por exemplo a separação dos serviços centrais de esterilização dos blocos operatórios, com enfermeiros gestores diferentes, e com a criação da Unidades Locais de Saúde, outros desafios se levantam!
Como estamos e para onde vamos? Aqui, o Ministério da Saúde deveria fazer um diagnóstico da situação, auditar estes serviços, do público e do privado, para se conhecer a realidade das instituições e implementar as melhorias indispensáveis.
A tendência em Portugal para a externalização dos serviços de esterilização é convidativa face aos constrangimentos orçamentais e uma forma de desresponsabilização sobre o cumprimento das normas e guidelines nesta área, nomeadamente na rastreabilidade do material.
As Unidades de Reprocessamento de Dispositivos Médicos de Uso Múltiplo são de uma enorme complexidade técnica e todas deveriam ter implementado o sistema de gestão de qualidade ISO 13485. Na defesa dos melhores interesses dos doentes e da sua segurança era importante averiguar quais são as entidades que a cumprem. Também precisamos preparar melhor os cidadãos para saberem questionar os serviços e poderem identificar em quem devem ou não confiar. E nem será preciso inventar novamente a roda, basta seguir bons exemplos de outros países europeus, como a Suíça ou França, apostando em processos de monitorização exigentes e em profissionais formados nessa área, o que em Portugal ainda não se verifica. Para os Enfermeiros já existe a possibilidade de frequentarem uma pós-graduação em reprocessamento de dispositivos e em prevenção e controlo de infeção e resistência aos antimicrobianos, mas qual é a instituição que investe a este nível na formação dos seus profissionais?
Porém, a manipulação e processamento destes dispositivos é realizada por assistentes operacionais, agora mais recentemente por técnicos auxiliares de saúde, muitas vezes sem supervisão de enfermeiros, e para esses profissionais não existe sequer formação adequada, o que na prática significa que estamos a trabalhar com fé no bom senso e sentido ético de quem na maioria das vezes não sabe o que significa ética, rigor nos procedimentos e qual a técnica adequada para cada dispositivo.
Enquanto levarmos com ligeireza os procedimentos de segurança, vamos continuar a aumentar a produção, mas também as taxas de morbilidade e de mortalidade por complicações e infeções evitáveis!