“A prática de Enfermagem em Portugal: da formação académica à transformação dos cuidados de Saúde”

Ao entrar recentemente num Serviço de Medicina de um Hospital Público em Portugal, deparei-me com uma realidade que, a um olhar desavisado, poderia parecer anacrónica. Uma jovem equipa de enfermagem desempenhava as suas funções segundo o método de ´trabalho à tarefa`, um sistema que remonta às minhas primeiras incursões no mundo profissional há mais de três décadas. Para um país que viu emergir uma nova geração de profissionais de saúde, com licenciaturas, especialidades várias, mestrados e doutoramentos, a continuidade na aplicação deste método parece quase uma relíquia de um passado que insistimos em não abandonar.

 

Enfº Sérgio Serra, Presidente da Mesa da Assembleia Geral da ASPE.

 

Este contraste gritante entre a formação avançada dos novos Enfermeiros e as práticas arcaicas ainda vigentes deveria suscitar aos principais órgãos representativos da profissão uma reflexão profunda sobre a aplicabilidade real do conhecimento académico na prática clínica. Onde reside a falha neste hiato temporal? O que impede a transição para métodos mais contemporâneos e holísticos de prestação de cuidados?

Podemos afirmar sem hesitações e com total convicção que a formação dos Enfermeiros em Portugal evoluiu exponencialmente nas últimas décadas. Nas últimas décadas as Escolas Superiores de Saúde e os Institutos Politécnicos têm investido em currículos abrangentes, que incluem contextos teóricos, prática clínica avançada, investigação e gestão em enfermagem. Estas mudanças tiveram como principal objetivo formar profissionais capazes de responder aos desafios complexos e dinâmicos dos cuidados de saúde modernos. No entanto, ao nos confrontarmos com algumas das realidades hospitalares, verificamos, em demasiados casos, a existência de uma dissonância entre o conhecimento adquirido e a prática efetiva dos profissionais de enfermagem. Uma realidade perturbadora!

Sabemos bem que a persistência do método de ´trabalho à tarefa` poderá ser atribuída a uma multiplicidade de fatores. Em primeiro lugar, conhecemos bem a resistência estrutural às mudanças. As instituições de saúde, frequentemente burocráticas, tendem a perpetuar práticas obsoletas, principalmente quando não há um incentivo claro para a inovação. Existe nesta matéria uma total convicção que a cultura organizacional não se transforma com a aplicação de um qualquer decreto. A metamorfose exige uma liderança visionária, capaz de inspirar e mobilizar as equipas em torno de uma visão de futuro que privilegie a excelência e a inovação. Contudo, esta liderança é muitas vezes vítima das mesmas armadilhas burocráticas que procura desmantelar. Desta forma, o círculo vicioso tende a perpetuar-se, com líderes enredados nas próprias teias da tradição, incapazes de imprimir a mudança que preconizam.

Por outro lado, a ausência de incentivos claros para a inovação é outro obstáculo significativo. Nas instituições de saúde, onde os recursos são frequentemente escassos e a pressão para cumprir metas (indicadores) imediatas é intensa, os projetos inovadores são vistos como riscos dispensáveis. A investigação e o desenvolvimento, pilares da inovação em qualquer área, são relegados para um segundo plano, considerados luxos numa realidade onde o imediatismo impera. A cultura do ´não inovar para não errar` prevalece, sufocando as iniciativas que poderiam, a longo prazo, traduzir-se em melhorias substanciais para os cuidados de saúde.

Por fim e não menos importante, a pressão constante sobre os serviços de saúde pública, com os habituais recursos escassos e uma elevada carga de trabalho, tendem também a favorecer métodos que são considerados ´seguros` e ´testados pelo tempo`, mesmo que sejam ineficazes ou profundamente desatualizados.

Todavia, há exceções que demonstram que a mudança é possível. Instituições que apostam na formação contínua, que valorizam a participação ativa dos profissionais na tomada de decisões e que incentivam a experimentação e o erro construtivo, conseguem romper com este visível marasmo. Estas ilhas de inovação provam que é viável cultivarmos um ambiente propício à mudança, onde a melhoria contínua é não só uma meta como uma realidade perfeitamente tangível. Uma realidade que exigirá necessariamente um compromisso institucional com a formação contínua e com a criação de ambientes propícios à implementação de novas abordagens, tais como consistentes investimentos em programas de desenvolvimento profissional que não só atualizem como também inspirem os Enfermeiros a aplicarem os seus conhecimentos de uma forma mais criativa e eficaz. Um trabalho que se suporte numa cultura de inovação e de aprendizagem contínua dentro das instituições de saúde tendo como suporte a promoção da investigação aplicada e o intercâmbio de boas práticas, de forma a valorizar a autonomia e o julgamento clínico dos Enfermeiros.

Uma ´inovação` que necessitará certamente e antes de mais, de um forte apoio político, assim como de uma vontade muito determinada das atuais elites e lideranças da profissão de enfermagem. Sem este apoio político e sem esta vontade férrea de mudança dificilmente se conseguirá fazer diferente! Vamos esperar mais 25 anos?

Que fique claro que a verdadeira medida do progresso não está apenas na aquisição de títulos académicos, mas sim na capacidade de transformar este vasto e relevante conhecimento num conjunto variado de melhorias tangíveis para a prática clínica. O desafio para os Enfermeiros do século XXI deverá transcender as barreiras do tradicionalismo e abraçar a mudança com uma visão renovada e um compromisso inabalável com a excelência nos cuidados de saúde. Só assim poderemos honrar o legado do conhecimento adquirido e garantir que a enfermagem em Portugal avance de uma forma significativa e sustentável.

 

Enfº Sérgio Serra, Presidente da Mesa da Assembleia Geral da ASPE.

 

 

 

 

 

Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros 

Rua Dr. Conselheiro Arala Chaves, nº 8, 1º Frente | 3880-038 Ovar

Tel: 256020462

www.aspe.pt

You may also like...