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Viajar com saúde e segurança

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À frente da Sociedade Portuguesa de Medicina do Viajante (SPMV), a médica Gabriela Saldanha defende uma visão integrada da saúde em movimento, onde conhecimento, prevenção e responsabilidade partilhada se tornam determinantes para proteger quem viaja e, em simultâneo, salvaguardar a saúde global.

O que é a Medicina do Viajante e por que é cada vez mais essencial num mundo globalizado?

Vivemos num tempo em que a mobilidade humana atinge níveis históricos e a saúde afirma-se como um bem global. Em 2024, ultrapassaram-se os 1,4 mil milhões de turistas internacionais em todo o mundo e, em Portugal, registaram-se cerca de 3,2 milhões de viagens ao estrangeiro, o valor mais elevado de sempre. Nunca se viajou tanto, nem tão depressa e com isso aumentaram também exponencialmente os riscos associados à mobilidade internacional. Cada viagem expõe o indivíduo a um conjunto complexo de riscos biológicos, ambientais e comportamentais. Entre os principais riscos infeciosos contam-se doenças emergentes e reemergentes  como dengue, zika, chikungunya, febre amarela, malária, monkeypox ou Covid-19, cujos padrões de distribuição geográfica se têm alterado em consequência das mudanças climáticas, da urbanização descontrolada e do aumento do tráfego aéreo intercontinental. Acrescem ainda riscos não infeciosos ( altitude extrema, exposição solar excessiva, variações de temperatura e humidade, ou fatores relacionados com alimentação, hidratação, segurança e adaptação cultural) com importância e impacto direto na saúde do viajante internacional.Estes riscos requerem uma avaliação médica individualizada, baseada em critérios clínicos, epidemiológicos e contextuais. O planeamento preventivo deve iniciar-se idealmente quatro a seis semanas antes da partida, permitindo ajustar vacinas, profilaxias, medidas de proteção e aconselhamento comportamental ao destino, duração da estadia, tipo de viagem (profissional, turística, humanitária ou migratória) e perfil clínico do viajante. Neste enquadramento, a Medicina do Viajante afirma-se como um campo estratégico da Saúde Global. Não se limita à administração de vacinas ou à prescrição de medicamentos preventivos; trata-se de uma disciplina médica integradora, que combina prevenção, vigilância epidemiológica, educação em saúde e aconselhamento personalizado, numa abordagem centrada no indivíduo, mas com impacto coletivo.

Em termos práticos, a Medicina do Viajante atua em três momentos-chave:

  1. Antes da viagem, avaliando riscos e estabelecendo medidas preventivas adequadas (vacinação, profilaxias, higiene, alimentação, segurança e gestão de doenças crónicas);
  2. Durante a viagem, oferecendo apoio, informação de emergência e estratégias de autoproteção;
  3. Após o regresso, assegurando o diagnóstico e acompanhamento de eventuais patologias adquiridas no estrangeiro.

Contudo, o seu papel vai muito além da dimensão clínica individual. Num mundo interligado, cada viajante pode ser também um elo na cadeia de transmissão de doenças. Assim, a Medicina do Viajante constitui simultaneamente uma ferramenta de proteção individual, uma estratégia de saúde pública e um instrumento de saúde global.

Em última análise, a Medicina do Viajante traduz a interdependência entre saúde, mobilidade e segurança global. Cada consulta de viajante constitui uma oportunidade para prevenir doenças, reduzir desigualdades e reforçar a resiliência dos sistemas de saúde. É uma medicina que transcende fronteiras e traduz o princípio de que proteger quem viaja é proteger também as comunidades de origem e de destino e, em última instância, o próprio planeta.

 

Gabriela Saldanha, Médica de Saúde Pública

 

 Qual tem sido o papel da SPMV na consolidação e modernização desta área em Portugal?

A SPMV nasceu há uma década para colmatar uma lacuna existente no panorama da saúde em Portugal: a necessidade de uma estrutura que coordenasse, de forma integrada, a formação, a investigação e a normalização da prática clínica em Medicina do Viajante.

Criada como sociedade científica sem fins lucrativos, a SPMV reúne profissionais de saúde (médicos de várias especialidades, enfermeiros, farmacêuticos, entre outros profissionais) ligados ao aconselhamento de viajantes internacionais e que partilham o mesmo propósito: promover a troca de conhecimento, boas práticas clínicas e critérios científicos uniformes, por forma a garantir qualidade e segurança em todas as fases da mobilidade internacional. Desde a sua fundação, a SPMV tem desempenhado um papel multidimensional e estruturante, assumindo-se hoje como entidade de referência nacional na área da Medicina do Viajante. A sua missão é clara e consiste em assegurar que todos os viajantes tenham acesso a aconselhamento médico qualificado, em tempo útil, baseado na evidência científica mais atual e ajustado ao destino, duração e perfil clínico individual. A SPMV procura garantir a uniformização e a qualidade da prática clínica através da definição de protocolos  técnicos e recomendações fundamentadas em evidência científica sólida, abrangendo áreas como a prevenção de doenças transmissíveis, a vacinação, a profilaxia da malária, o acompanhamento de viajantes com condições crónicas, a gestão de viajantes especiais e a resposta a riscos emergentes. Paralelamente, promove a formação contínua de profissionais de saúde, organizando reuniões científicas, workshops temáticos, cursos , incluindo o reconhecido workshop de vacinas em viajantes. Estes encontros constituem momentos de partilha de experiência e atualização entre especialistas nacionais e internacionais, consolidando a credibilidade e a excelência da Medicina do Viajante praticada em Portugal.

A estrutura da SPMV é composta por membros efetivos (nacionais e estrangeiros) que se identificam com os objetivos da sociedade e contribuem para a sua missão. A cooperação institucional é um pilar essencial da atuação da SPMV. A Direção coordena as atividades científicas e formativas, define políticas e orienta estratégias de capacitação. Entre as suas atividades mais relevantes destacam-se as reuniões científicas anuais, os fóruns internacionais e regionais, os workshops técnicos e as ações de cooperação com sociedades congéneres. A SPMV elabora pareceres científicos sobre surtos e riscos emergentes, divulga informação técnica dirigida a profissionais e viajantes, promovendo a excelência e a credibilidade da prática clínica nesta área.

Ao longo desta década de existência, a SPMV consolidou-se como uma instituição científica ativa e estrategicamente posicionada para responder aos desafios da saúde global. O seu papel tem sido o de consolidar, modernizar e internacionalizar a Medicina do Viajante em Portugal, transformando-a numa área reconhecida, científica e estratégica para a saúde pública, a mobilidade humana e a segurança global. Enquanto presidente da SPMV, considero que a nossa missão consiste em transformar conhecimento em proteção efetiva.

Qual o principal desafio na consolidação da Medicina do Viajante em Portugal, e de que forma a SPMV procura responder a essa necessidade?

O grande desafio da Medicina do Viajante em Portugal é consolidar o seu reconhecimento institucional, científico e operativo, garantindo que esta área seja plenamente estruturada, regulamentada e valorizada como um pilar essencial da Saúde Global.

A criação da Competência em Medicina do Viajante pela Ordem dos Médicos foi um marco histórico no reconhecimento formal desta área, ao estabelecer que o aconselhamento ao viajante internacional requer formação específica, atualização científica permanente e responsabilidade clínica regulamentada. Contudo, é fundamental consolidar este progresso através da definição de normas claras e uniformes para o exercício profissional, assegurando que médicos, enfermeiros e outros profissionais com envolvimento direto, possam desempenhar funções articuladas e tecnicamente competentes, sempre com base na evidência científica e nas melhores práticas nacionais e internacionais. Neste ecossistema, a rede nacional de Centros de Vacinação Internacional (CVI) assume um papel absolutamente central. Os CVIs representam todos os anos, uma porta de entrada da Medicina do Viajante para milhares de cidadãos  e são uma peça-chave na prevenção de doenças transmissíveis, vigilância epidemiológica, cumprimento de acordos internacionais e cumprimento do Regulamento Sanitário Internacional (RSI). A SPMV reconhece a excelência técnica desta rede, defendendo a importância da uniformização de procedimentos, garantindo melhor acessibilidade e equidade territorial, harmonizando práticas clínicas, critérios de qualidade e protocolos técnicos entre as diferentes unidades do país. Tal implicará também reforçar a capacidade de resposta pública, numa visão de futuro, adaptando-a às novas realidades de mobilidade e aos desafios globais emergentes.

Neste enquadramento, a SPMV tem trabalhado com base em quatro eixos estratégicos fundamentais:

– Valorização da Medicina do Viajante e da sua competência profissional;

– Governança e advocacia;

– Comunicação e visibilidade pública, aproximando a saúde em viagem dos cidadãos;

– Formação contínua, sustentada na ciência e na evidência.

A SPMV tem contribuído para a definição de referenciais técnicos, para a integração efetiva desta área nas políticas de saúde pública e fortalecimento da resposta nacional em contexto de viagens e mobilidade global. Tem igualmente investido na formação e capacitação de profissionais e na elaboração de recomendações técnicas atualizadas. Destacamos a importância do papel estratégico dos agentes de viagem e operadores turísticos, que representam o primeiro ponto de contacto com muitos viajantes. Acreditamos que a sua sensibilização é essencial para promover uma cultura de prevenção e garantir que o viajante procure a consulta do viajante em tempo útil, permitindo que as recomendações, vacinas e medidas profiláticas tenham real eficácia. Neste enquadramento é fundamental envolver estes parceiros em ações conjuntas de informação, educação e responsabilidade partilhada, reconhecendo que a saúde do viajante começa antes da partida, muitas vezes ainda na fase de planeamento da viagem. A nossa visão é clara e abrangente: garantir que qualquer viajante ( turista, migrante, trabalhador humanitário ou profissional em mobilidade) tenha acesso, antes, durante e após a viagem, a um aconselhamento qualificado e seguro, contribuindo não apenas para a sua proteção individual, mas também para a defesa da saúde pública nacional e internacional.

Mensagem Final

A Medicina do Viajante é uma ponte entre a saúde individual, saúde pública e responsabilidade global. Num mundo em que a mobilidade humana atinge níveis históricos, as alterações climáticas e as migrações redesenham o mapa da saúde e impõem desafios inéditos. A SPMV tem procurado responder a estas necessidades, promovendo prevenção, educação, vigilância e boas práticas clínicas, sempre apoiada na ciência e na cooperação nacional e internacional.

Defendemos um turismo consciente, uma mobilidade responsável e uma saúde global que transcende fronteiras.

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