Um sistema de saúde que não valoriza na mesma medida todos os profissionais está condenado ao fracasso!

A centralidade do tema das condições laborais dos profissionais de saúde, particularmente dos Enfermeiros, no contexto do sistema de saúde português, continua ´ad exaustum`a ser subestimada. Esta questão reveste-se de uma importância crucial, não apenas pelas implicações diretas na qualidade dos cuidados prestados à população, como também pelo impacto profundo que tem na estrutura e funcionamento global do sistema de saúde. A persistente desvalorização e invisibilidade dos Enfermeiros no espaço público revelam um problema sistémico, que necessita de uma abordagem rigorosa e imediata.

 

Enfº Sérgio Serra, Presidente da Mesa da Assembleia Geral da ASPE.

 

A ênfase mediática sobre os habituais diálogos entre o governo e os médicos portugueses, enquanto necessária e relevante, tem gerado uma distorção perigosa no discurso público. Ao concentrarmo-nos exclusivamente nas reivindicações de um único grupo profissional, estamos a negligenciar a complexidade e a interdependência de todos os atores envolvidos na prestação de cuidados de saúde. Os Enfermeiros, que constituem a espinha dorsal do sistema de saúde português, assegurando a continuidade e a qualidade dos cuidados, têm sido sistemática e intencionalmente relegados para um plano secundário. Esta marginalização não é apenas uma questão de injustiça laboral; é uma ameaça direta à eficácia e à sustentabilidade do próprio sistema de saúde.

É, por isso, fundamental reconhecer que o bem-estar dos médicos, embora crucial, não pode ser visto como uma solução isolada para os problemas do setor. A saúde pública é um organismo multifacetado, onde cada profissional desempenha um papel essencial. Esta contínua falha na valorização adequada dos Enfermeiros, em particular, compromete a coesão e a eficiência do todo do sistema de saúde português. Estes profissionais são responsáveis por uma vasta gama de funções, que vão desde os cuidados diretos ao doente até à gestão de unidades de saúde, passando pela educação dos utentes e pela implementação de políticas de saúde. Continuar intencionalmente a ignorar a sua importância é não só um erro estratégico como também uma miopia institucional, que terá certamente consequências desastrosas.

A narrativa pública que simplifica a resolução dos problemas do setor da saúde através da melhoria das condições dos médicos cria uma falsa sensação de segurança e progresso. Este discurso monolítico é redutor e não capta a verdadeira dimensão dos desafios enfrentados pelo sistema de saúde. Esta invisibilidade dos Enfermeiros no debate público é sintomática de uma cultura que continua a privilegiar determinadas profissões em detrimento de outras, perpetuando desigualdades que enfraquecem o sistema como um todo.

É urgente uma reavaliação desta abordagem, promovendo uma visão mais holística e inclusiva das necessidades e contribuições de todos os profissionais de saúde.

Estou absolutamente convicto que a saúde pública não pode ser fragmentada em partes isoladas e tratada de forma desconectada. As boas práticas de gestão assumem que cada profissional desempenha um papel crucial na prestação de cuidados, desde o diagnóstico até ao tratamento e acompanhamento dos utentes. Negligenciar a valorização e o reconhecimento de qualquer um destes profissionais compromete não apenas a equidade no ambiente de trabalho como também a eficácia operacional do sistema como um todo.

A falta de uma perspetiva integrada irá certamente resultar em desigualdades na distribuição dos recursos, no desperdício de esforços e em falhas na coordenação dos serviços de saúde. Além disso, a gestão eficiente dos serviços implica a implementação de boas práticas, que só podem ser alcançadas através da compreensão abrangente das dinâmicas internas do sistema. Isso inclui os aspetos técnicos e clínicos e as considerações sociais, económicas e culturais que influenciam diretamente o acesso e a qualidade dos cuidados de saúde.

As políticas de saúde devem ser formuladas com base em dados sólidos e numa análise criteriosa de todas as partes envolvidas, de modo a promover a cooperação interdisciplinar e a maximizar os recursos disponíveis.

Este é o tempo dos decisores políticos e dos gestores de saúde adotarem, de uma vez por todas, boas práticas gestionárias e uma abordagem que reconheça e valorize todos os profissionais de saúde de uma forma equitativa. Isto irá fortalece a coesão e a eficiência do sistema de saúde e promover um ambiente de trabalho mais harmonioso e motivador para os profissionais. A colaboração entre diferentes áreas e diferentes disciplinas enriquece o intercâmbio de conhecimentos e experiências, contribuindo para uma resposta mais eficaz aos desafios emergentes e às necessidades variadas da população.

Os Enfermeiros portugueses, por sua vez, têm também de fazer a sua parte e romper definitivamente com a inércia histórica que os tem caracterizado. A passividade e a aceitação resignada das condições impostas não podem continuar a ser a norma. A mobilização coletiva e a ação concertada são cruciais para que possam reivindicar o reconhecimento e a valorização que merecem. Esta mudança de paradigma não se limita apenas a benefícios laborais imediatos, mas visa assegurar a dignidade e a sustentabilidade, a longo prazo, da profissão. A proatividade dos enfermeiros na defesa dos seus direitos é um passo crucial para a transformação do sistema de saúde.

A história tem-nos ensinado que as mudanças significativas resultam de muito trabalho e de uma pressão contínua e profundamente organizada. E a profissão precisa de desenvolver a maturidade que lhe permita ser capaz de atingir esse desiderato. Os governantes, frequentemente indiferentes aos apelos dispersos, são obrigados a responder quando são confrontados com uma frente unida e fortemente determinada. Assim, entendo que os Enfermeiros devem adotar uma postura assertiva e utilizar todas as ferramentas que estão disponíveis para amplificar a sua voz. A inovação nas formas de protesto e os processos de negociação em curso são essenciais para romper com a apatia generalizada e para assegurar que as exigências dos Enfermeiros sejam definitivamente ouvidas e atendidas.

Importa também referir que a relevância deste tema transcende a esfera laboral, na medida que impacta diretamente com a qualidade dos cuidados de saúde prestados à população.

Um sistema de saúde que não valoriza na mesma medida todos os profissionais está condenado ao fracasso. E, infelizmente, este é o caminho que observo há mais de uma década em Portugal. A coesão, a motivação e o bem-estar dos trabalhadores são pilares essenciais para a eficácia e a resiliência do setor. Os Enfermeiros, em particular, desempenham um papel insubstituível na prestação de cuidados contínuos e de qualidade. O reconhecimento do seu valor é, portanto, uma questão de justiça, mas também uma necessidade estratégica para garantir a sustentabilidade do sistema de saúde.

Este é o tempo de fazermos diferente, de reconhecermos a interdependência de todos os profissionais de saúde e de sermos capazes de promover uma abordagem mais inclusiva e equitativa. Somente assim poderemos garantir um sistema de saúde capaz de responder às necessidades da população, valorizando e respeitando todos os seus protagonistas.

 

Enfº Sérgio Serra, Presidente da Mesa da Assembleia Geral da ASPE.

 

 

 

 

 

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