Que Modelo de Gestão queremos para o futuro da Saúde em Portugal ?

 

 

A escolha do modelo de gestão do sistema de saúde em Portugal representa uma das decisões mais cruciais para o desenvolvimento social, económico e humano do país. Esta questão transcende os limites do debate técnico e administrativo e inscreve-se profundamente no tecido ético e político de uma nação. Decidir entre um Serviço Nacional de Saúde (SNS) integrado e multidisciplinar ou um modelo biomédico centrado exclusivamente no papel do médico não é meramente uma questão organizacional; na essência trata-se de definir o caráter e os valores que orientarão o futuro dos cuidados de saúde em Portugal. Esta escolha é, na verdade, uma reflexão sobre que tipo de sociedade queremos construir e que tipo de proteção queremos assegurar aos cidadãos.

A importância deste tema reside, em primeiro lugar, na sua relevância para a qualidade de vida dos portugueses. Um sistema de saúde integrado e centrado no cidadão oferece uma visão holística da saúde, compreendendo que a doença e o bem-estar são fenómenos multi-dimensionais. Numa abordagem integrada, a saúde não se limita ao tratamento de patologias isoladas, mas expande-se para incluir a prevenção, a reabilitação e o acompanhamento contínuo. Cada profissional de saúde – seja médico, enfermeiro, psicólogo, nutricionista, fisioterapeuta, entre outros – desempenha um papel fundamental na construção de um sistema coeso cujo objetivo é garantir o bem-estar do cidadão em todas as fases da sua vida. Este modelo promove a colaboração e a interdependência entre os diferentes profissionais de saúde e permite uma abordagem integrada dos cuidados de saúde.

Por outro lado, o modelo biomédico, centrado exclusivamente no ato médico, tende a fragmentar os cuidados de saúde e a subordinar as outras especialidades a um papel secundário. Esta visão reduz significativamente a complexidade da saúde a uma série de intervenções clínicas e diagnósticos, sem considerar o papel vital de outras formas de cuidados e de acompanhamento. A redução da saúde ao domínio estrito da medicina é tecnicamente eficiente em certas situações, mas falha em capturar a complexidade da vida humana, onde fatores emocionais, sociais e psicológicos desempenham um papel crucial no bem-estar geral. Assim, ao se centralizar o Poder e a tomada de decisões nos médicos estamos a desvalorizar o contributo essencial de outros profissionais de saúde, prejudicando decisivamente a qualidade dos cuidados prestados.

Adicionalmente, a escolha de um modelo de gestão de saúde está intimamente ligada à sustentabilidade económica e à justiça social. Um sistema de saúde integrado revela-se mais eficiente a longo prazo no sentido em que contribui para prevenir doenças, promover hábitos de vida saudáveis e reduzir a necessidade de intervenções médicas mais dispendiosas. Ao envolver uma ampla gama de profissionais, este modelo permite uma distribuição mais equitativa dos recursos e garante que o sistema de saúde responde às necessidades da população de uma forma mais inclusiva e justa. Por outro lado, um modelo biomédico tende a conduzir a uma utilização excessiva de recursos em áreas muito específicas, negligenciando a prevenção e o acompanhamento contínuo, o que contribui decisivamente para aumentar os custos a longo prazo, criando em simultâneo desigualdades no acesso aos cuidados de saúde.

O impacto desta escolha também se reflete na formação e na valorização dos profissionais de saúde. Um sistema integrado promove a valorização de todas as profissões e reconhece o papel fundamental que cada uma desempenha no processo de cuidados. Ao se apostar na colaboração e no respeito mútuo entre as diferentes áreas da saúde, este modelo incentiva o desenvolvimento de uma cultura de trabalho em equipa e de aprendizagem contínua. Em contraste, o modelo biomédico tende a promover uma hierarquia rígida, onde o poder está concentrado exclusivamente na classe médica, o que, em muitos contextos da prática clínica, desincentiva a inovação e a interdisciplinaridade, essenciais para que se consiga enfrentar os desafios de saúde pública do futuro.

 

 

 

Este debate é ainda mais relevante no contexto atual, em que as mudanças demográficas e os avanços tecnológicos estão a transformar rapidamente o cenário da saúde. O envelhecimento da população, o aumento das doenças crónicas e a crescente complexidade das condições de saúde exigem uma abordagem mais coordenada e bem mais integrada. Neste contexto, o modelo de saúde que escolhemos irá determinar a nossa capacidade em responder eficazmente a estas novas realidades. Um sistema centrado no cidadão e nas suas necessidades multifacetadas permitirá uma adaptação mais ágil e eficaz às mudanças que se avizinham, ao passo que um sistema excessivamente centrado na medicina poderá revelar-se inadequado para lidar com a diversidade e com a complexidade dos problemas de saúde do futuro.

Importa ainda salientar que a escolha de um modelo de gestão para o sistema de saúde é essencialmente uma escolha política no sentido em que esta irá refletir os valores e as prioridades de uma qualquer sociedade. E ficou claro que são modelos bem diferentes com resultados bem distintos. Um dos modelos valoriza a integração, a colaboração e o cuidado holístico colocando o cidadão no centro do sistema e reconhecendo a sua dignidade e a sua complexidade; certamente um modelo que reflete uma visão de sociedade que valoriza a justiça social, a equidade e o bem-estar de todos os seus membros. Por outro lado, o outro modelo – modelo biomédico -, ao concentrar o Poder e os recursos em torno da disciplina médica faz refletir uma visão mais tecnocrática e hierarquizada da sociedade, onde o foco está no Poder médico, na eficiência técnica e no tratamento de doenças, em vez da promoção global da saúde.

Em suma, a definição do modelo de gestão para o sistema de saúde em Portugal é uma decisão de enorme importância no sentido em que tem implicações profundas no futuro do nosso país. Esta escolha não se limita ao domínio da saúde, mas toca em questões fundamentais sobre o tipo de sociedade que queremos construir. Cabe, por isso, aos atuais decisores políticos e à sociedade como um todo, refletir profundamente sobre esta escolha, conscientes de que o futuro da saúde em Portugal irá certamente depender da decisão que hoje for tomada.

 

Enfº Sérgio Serra, Presidente da Mesa da Assembleia Geral da ASPE

 

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