Saúde Mental no local de trabalho

 

 

Enf.ª Álvara Silva, Vice-presidente da Direção da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros – ASPE

 

 

O Dia Mundial da Saúde Mental comemorou-se mais uma vez no passado dia 10 de outubro e este ano a Organização Mundial de Saúde (OMS) deu destaque à saúde mental nos locais de trabalho. Nos dias que o antecederam e seguintes, sucederam-se inúmeras ações comemorativas, apresentação de projetos e relatórios, atividades mais ou menos públicas nos locais de trabalho, desde o ecrã de bloqueio do computador ao clássico post nas redes sociais com #saudemental.

O conceito de saúde mental no local de trabalho goza de unanimidade quanto á sua importância para a saúde de indivíduos e comunidade. Neste sentido e observando o ecossistema da Saúde encontramos quase que um efeito cascata de contributos, desde a OMS, à União Europeia, através da sua Agência para a Segurança e Saúde no Trabalho, passando pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) com o seu Programa Nacional para a Saúde Mental, o Laboratório Português de Ambientes Saudáveis (LABPATS). As ordens profissionais, como a dos Psicólogos, dos Médicos e dos Enfermeiros, também emitem pareceres e indicações com o intuito de salvaguardar a saúde mental dos profissionais que representam. E poderia continuar a enunciar entidades com legitimas preocupações, estudos e relatórios, com diagnósticos, propostas de medidas e instrumentos de avaliação de resultados

Mas efetivamente o que é que mudou?

O SNS é o maior empregador no setor publico da saúde, emprega milhares de trabalhadores – só Enfermeiros são aproximadamente 51 000.

E serão os ambientes de trabalho dos Enfermeiros saudáveis? Certamente que não!

Os enfermeiros estão todos os dias em todos os contextos de prestação de cuidados de saúde e nunca é demais relembrar que acompanham todo o ciclo de vida dos cidadãos nos seus momentos felizes, mas sobretudo nos mais delicados e dolorosos. São estes os profissionais que têm nas suas atribuições e competências cuidar das pessoas saudáveis ou doentes qualquer que seja a gravidade da sua situação de saúde.

Olhando atentamente para os contextos em que trabalham os enfermeiros, é possível elencar vários fatores que aumentam o risco. A natureza do seu trabalho exige proximidade aos doentes, ao seu sofrimento e às suas histórias de vida, o que determina logo à partida exposição à dor, à tristeza, à fragilidade humana e à finitude da vida. Acresce a esta proximidade a frequente falta de recursos materiais e de profissionais para prestar os cuidados que os doentes precisam. E falamos de coisas tão simples como lençóis, cadeiras de rodas, espaços com luz natural, ou simplesmente, tempo do enfermeiro e espaço com privacidade para escutar doente e lhe dar conforto e apoio emocional.

Paradoxalmente, nas instituições de saúde cresce uma aura de desenvolvimento tecnológico, seja pela cirurgia robótica, seja pelo advento da Inteligência Artificial, que parece sugar todas as atenções mediáticas e intenções de investimento, ainda que falte fazer o essencial para assegurar o básico!

Outra vertente a considerar é o permanente desrespeito pelo sono, pelo descanso e pelo tempo em família de cada enfermeiro. Será difícil encontrar um contexto de trabalho com horários por turnos mais hostil e nocivo que o dos Enfermeiros! Desde a rotatividade aleatória dos turnos, às práticas, ilegais, de planear escalas de trabalho, com mais horas do que as contratadas forçando o falso trabalho suplementar, juntam-se longas jornadas sem os períodos de pausa que facilitem o reequilíbrio físico e mental.

Ora, trabalhar por turnos já condiciona a saúde mental do enfermeiro, se acrescentarmos o constante aumento das horas trabalhadas diária e semanalmente, que não raras as vezes ultrapassam as 60 horas/semana temos a fórmula perfeita para a doença.

Bem sabemos que, o banco de horas individual foi revogado do Código do Trabalho há anos, no entanto para os enfermeiros é frequente encontrar em qualquer instituição saldos de horas superiores a 100 horas de trabalho, realizado e não pago, resultante de turnos programados e impostos sob a “evocação” dos deveres deontológicos do enfermeiro, que se subjugam o seu direito ao descanso à sua suposta responsabilidade para com a comunidade e os doentes – “tens que seguir turno, os doentes precisam.”!

 

 

 

 

O atropelo aos direitos parentais é outra realidade!

Para uma enfermeira ou um enfermeiro, gozar de horário de aleitamento e de horário flexível não representa o exercício de um direito, significa “arranjar problemas á equipa”!

E, não raras vezes, os enfermeiros com filhos pequenos se veem confrontados com a necessidade de assegurar a assistência aos seus filhos e cumprir o horário que lhes é imposto. Nestas matérias, frequentemente, a disputa entre a necessidade do trabalhador e a inflexibilidade da entidade empregadora é dirimida pela Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego ou mesmo pelos tribunais.

Os gestores institucionais e as hierarquias diretas focam-se na necessidade de gerir os recursos insuficientes para assegurar a resposta em cuidados de saúde, nos números de absentismo, nos indicadores contratualizados e usam todos os expedientes alcançar esses resultados. No entanto, poucos são os que reconhecem a desmotivação, a desilusão, a exaustão, o consequente presentismo e tão pouco agem para o mitigar! É cada vez mais evidente que nestes ambientes hostis decai a empatia entre pares, os conflitos são mais frequentes, o absentismo aumenta e o abandono da profissão é cada vez maior!

Todos os dias se tecem novos planos para melhorar a eficiência e a eficácia das instituições de saúde, se persegue o Santo Gral da produção, mas em todos estes processos se ignora a escassez de enfermeiros, bem como as condições, cada vez mais difíceis, de vida e trabalho dos mesmos.

O que podemos concluir é que terminado o “fim de festa” das ações comemorativas e o desinteresse pelo #saudemental nas redes sociais, voltamos à hipocrisia do dia a dia !

Depois da data comemorativa, está tudo igual!

De que servem todos os estudos, os diagnósticos, os alertas, as recomendações para se assegurarem ambientes de trabalho saudáveis, em prol de enfermeiros e doentes, se não passamos das palavras e ações mediáticas aos atos?

 

 

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