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O retorno das tradwives: O que nos diz esta tendência sobre o mundo de hoje?

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Nos últimos anos, uma tendência aparentemente paradoxal tem ganhado força entre mulheres jovens, formadas e bem-educadas: o ideal das tradwives , esposas tradicionais que optam por viver centradas no lar, cuidar dos filhos e submeter-se ao marido, enquanto rejeitam a carreira profissional como modelo de vida. Através de plataformas como TikTok e Instagram, este estilo de vida é promovido com estética vintage e uma aura de feminilidade clássica. O que surpreende é que muitos homens jovens, igualmente da Geração Z e Millennials, também abraçam ou desejam este modelo. Mas o que explica este regresso a um ideal de género pré-feminista num mundo que, durante décadas, lutou pelos direitos das mulheres à autonomia, à igualdade no trabalho e à participação ativa na sociedade? Será sintoma de um mundo em crise?

 

Linda Pereira, CEO da CPL Events & Consultancy

 

Mais do que um movimento conservador isolado, a ascensão das tradwives deve ser vista como sintoma de uma crise existencial mais ampla. A pandemia de Covid-19 foi um ponto de viragem: trouxe insegurança económica, acelerou o burnout profissional e obrigou milhões a repensar os seus papéis familiares. Para muitas mulheres, o lar deixou de ser prisão para ser refúgio. Ao mesmo tempo, o teletrabalho reforçou a ideia de que a vida doméstica pode ser uma escolha legítima  e até desejável. Este ambiente de incerteza encontra eco numa crescente polarização política. Por toda a Europa e nos Estados Unidos, a ascensão de partidos tradicionalistas e populistas, com discursos centrados em “valores de família”, “papéis naturais” e nostalgia identitária, criou um terreno fértil para a normalização de ideais conservadores. Assim, o modelo tradwife deixa de ser apenas uma preferência individual para se tornar parte de uma narrativa ideológica maior, com implicações sociais e políticas reais.

Mas será mesmo uma escolha livre  ou uma fuga? Apesar de muitas mulheres afirmarem que esta é uma escolha consciente e empoderada, é importante questionar: trata-se de liberdade ou de fuga? Fuga do cansaço com o feminismo institucionalizado, da instabilidade laboral, da solidão urbana e da cultura do desempenho. Ao prometer uma vida “simples” e “natural”, o modelo tradicional oferece às novas gerações um mapa claro num mundo cada vez mais caótico.

Para os homens, a situação é semelhante: a crise de identidade masculina  acelerada pela perda de privilégios históricos e pela transformação dos papéis sociais, tem levado muitos a procurar modelos claros e hierárquicos, onde sabem “o seu lugar”. É neste contexto que emergem discursos misóginos, influencers antifeministas e até movimentos organizados contra a emancipação feminina, muitas vezes ligados ao aumento da violência no namoro. O perigo está na romantização de estruturas que, historicamente, alimentaram desigualdade, dependência económica e violência. Quando a escolha pela vida doméstica se torna um imperativo cultural ou ideológico, ainda que disfarçado de liberdade, corremos o risco de silenciar outras escolhas e reforçar expectativas nocivas sobre o papel da mulher e do homem na sociedade.

Além disso, a tendência está longe de ser irrelevante: conteúdos com a hashtag #tradwife já acumulam centenas de milhões de visualizações e seguidores. O impacto social e cultural começa a ser visível, e pode influenciar futuras políticas públicas, desde os direitos reprodutivos à educação sexual, passando por reformas laborais e incentivos à natalidade.

O que devemos então  aprender? O fenómeno das tradwives não deve ser descartado com sarcasmo ou desdém. Ele é um espelho de um mundo que falhou em oferecer alternativas viáveis e sustentáveis à promessa da emancipação. Ao invés de condenar, é fundamental compreender por que tantas jovens estão a rejeitar o progresso pelo qual tanto se lutou.

Precisamos, mais do que nunca, de um debate profundo sobre o que significa liberdade, igualdade e bem-estar no século XXI. A verdadeira escolha só existe quando todas as opções são valorizadas, sem romantizações, mas também sem imposições ideológicas. Porque o regresso ao passado, quando vem embalado em filtros de Instagram, pode ser mais perigoso do que parece.

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