Vontade e persistência

Célia Coelho - arqueóloga

Célia Coelho é um nome sonante na arqueologia em Portugal. Ou não estivéssemos a falar de uma das primeiras mulheres (se não a primeira) a enveredar na arqueologia enquanto empresária em solo português. O seu percurso conta já com 17 anos de experiência e muitos mais se avizinham.

Para que possamos contextualizar os nossos leitores, peço por lhe pedir que nos apresente a Archeocélis. Como surge a mesma?

Com vista a constituir um marco positivo para a Arqueologia em Portugal decidi fundar a ArcheoCélis – Investigações Arqueológicas, Lda. a 21 de maio de 2002. Apostando numa equipa de profissionais capazes de executar os trabalhos requisitados, e, resultante desse investimento, consegui que a empresa desempenhasse um papel ativo na comunidade arqueológica. Dois anos antes havia-me estreado como profissional de arqueologia com a unipessoal Célia Aniceto.

Desde então temos desenvolvido os nossos trabalhos, quer a nível nacional quer a nível internacional, e realizamos intervenções arqueológicas nos variados períodos históricos, desde a Pré-história à Contemporaneidade. Na sua maioria, estes trabalhos inserem-se no âmbito da arqueologia de caráter preventivo ou de emergência, atuando em empreendimentos públicos ou privados, como o exemplo das construções rodoviários e ferroviárias, obras de saneamento, distribuição de águas e gás, implementação de linhas de alta tensão, reabilitação urbana, construção de barragens e empreendimentos turísticos. Todas as obras têm como objetivo principal a salvaguarda do património cultural e a posterior divulgação científica dos resultados obtidos. Desta forma, a empresa apresenta um vasto leque de serviços disponíveis aos nossos clientes dos quais se destacam: a realização de estudos de impacte ambiental, acompanhamento arqueológico de obra, escavações de emergência nos diferentes meios – terrestre ou aquático, prospeção arqueológica, conservação e restauro de património, antropologia e investigação laboratorial de Arqueologia.

Que análise faz destes anos de existência?

Ao longo de uma jornada já com 17 anos há com certeza muitas vivências, muita partilha e experiência humana e, como em todos os percursos, momentos muito bons e outros particularmente duros. O balanço é francamente positivo. Na arqueologia temos esta coisa de sermos movidos por uma grande paixão e poder tê-la concretizado e fazer com que esta crescesse e proporcionasse trabalho a outros é uma realização pessoal grande. É isso que nos dá força e houve sempre um empenho pessoal muito grande para que todo este projeto continuasse a andar, mesmo quando os ventos não correram tão a favor. Vontade e persistência acho que são duas palavras que podem caracterizar a minha postura. Os anos da crise não foram fáceis, pois estamos dependentes da construção civil que, como sabemos, sofreu aí um terrível abalo. Aos poucos, as coisas parecem estar a recuperar, mas ainda estamos longe de atingir os níveis que conhecemos no passado. E o caminho tem de passar por uma revalorização deste quadro técnico altamente especializado. Até à data, ultrapassámos já as três centenas de projetos. Já chegamos a ter equipas com 100 pessoas, numa altura em que o panorama económico do país permitia que os trabalhos na construção civil fossem muitos e em simultâneo. Todos os trabalhos realizados foram gratificantes e interessantes.

Pedia-lhe que nos explicasse no que consistem investigações arqueológicas. Como acontece este processo?

De acordo com o Regulamento dos trabalhos arqueológicos (Decreto-Lei n.º 270/99
de 15 de julho, e alterado pelo Decreto-Lei n.º 287/2000, de 10 de novembro, carece de uma adaptação ao cenário atual da arqueologia nacional, sendo, desta forma, necessário aprovar um novo Regulamento ( (Decreto-Lei 164/2014) entende-se como trabalhos arqueológicos, “…todas as ações realizadas em meio terrestre e subaquático que, através de metodologias próprias da arqueologia, visem a identificação, registo, estudo, proteção e valorização do património arqueológico, efetuadas por meio de prospeções, sondagens, escavações, acompanhamentos arqueológicos, ações de registo de contextos, estruturas arqueológicas e estratigrafia da arquitetura e ações de conservação e valorização em monumentos, conjuntos e sítios”. No que diz respeito à arqueologia preventiva ou de emergência, esta visa a minimização de impactes sobre o património decorrentes de empreendimentos e projetos, quer de âmbito público, quer de âmbito privado. Dependendo do carácter do empreendimento este pode requerer trabalhos prévios, como estudos e impacte ambiental onde os estudos patrimoniais são igualmente integrados ou somente trabalhos de acompanhamento arqueológico. Para qualquer elemento patrimonial identificado são previstas medidas de minimização, mediante o tipo de impacte que este irá sofrer, que poderá incluir apenas o seu registo ou mesmo trabalhos de escavação. No caso de obras com afetação mais ampla sobre um território, como por exemplo pode ser o caso das barragens, podem ainda ser definidas medidas compensatórias que incluam trabalhos e estudos adicionais sobre o património. Todos os trabalhos realizados são devidamente documentados e alvo de cuidado relatório que terá de sofrer aprovação da entidade tutelar do património. Dependendo da relevância e carácter dos estudos efectuados estes poderão ainda ser alvo de publicações científicas ou de divulgação.

O que vos difere das restantes empresas do setor?

Tentamos sempre pautar o nosso trabalho pelo rigor científico, fomentar uma boa relação com os nossos colaboradores e clientes, de onde possa também decorrer um ambiente de mútuo apoio e partilha de saberes por forma a promover inclusivamente um ambiente de sensibilização e interesse pela causa patrimonial. Lutamos, por outro lado, pela dignificação da carreira de arqueólogo enquanto técnico superior no âmbito de um trabalho altamente especializado e que deve ser valorizado e respeitado como tal.

Numa edição em que falamos do lado feminino à frente de grandes entidades e empresas de referência, pergunto-lhe como tem visto o aumento do número de mulheres em cargos de chefia e de decisoras.

Vejo com muito bons olhos e desejo que esses números aumentem ainda mais – até porque, sabemos, que nos cargos realmente de topo continua a haver uma resistência grande ao acesso da mulher. Não se trata de transformar um mundo de homens num mundo de mulheres. Trata-se de lutar por um mundo igualitário onde a paridade entre homens e mulheres se constitua como sinergia de um mundo mais justo e implicitamente melhor, porque a ‘energia’ feminina faz sinceramente falta nas decisões que têm ditado o rumo da humanidade. Esse tem vindo a ser o meu próprio percurso, plasmado no percurso da Archeocélis. Eu, se não fui a primeira mulher arqueóloga empresaria, terei sido seguramente das primeiras. Quando iniciei o meu percurso profissional deparei-me com um mundo à partida inóspito onde eu chegava a ser a única mulher em obra. Nestes inícios, note-se, encontrei também pessoas, homens, que me apoiaram e se revelaram excelentes pessoas por quem ainda hoje tenho a maior consideração. Mas no contexto geral tive que ir abrindo, desbravando um caminho que não estava à partida traçado para uma mulher. E esse foi um desafio muito pessoal para mim. Porque senti que estava a percorrer mais um bocadinho desse caminho de luta que não era só minha, era nossa, das mulheres. E criei a minha empresa, assumi o meu nome e sinto que ganhei o meu espaço próprio neste mundo da Arqueologia. Ao longo de todos estes anos a Archeocélis tem contado tanto com colaboradores homens como de mulheres. Mas a aura da empresa, se se pode dizer assim, é inegavelmente feminina porque tem plasmada na sua história precisamente esse meu percurso pessoal de luta enquanto mulher. E eu sinto que de um modo especial tento incutir determinados valores às arqueólogas mais jovens que comigo vão trabalhando, para que em momento algum tenham medo ou hesitação de se afirmarem no ambiente de trabalho pelo facto de serem mulheres.

Este mundo tão específico da arqueologia é maioritariamente feminino ou masculino? Como se sente no mesmo?

O mundo da arqueologia é masculino e feminino. Não tendo noção, em termos percentuais, do número de arqueólogas vs arqueólogos, diria que os números estarão mais ou menos equilibrados, pelo menos ao nível da formação académica. Tenho consciência, contudo, que haverá uma maior tendência para o abandono da profissão por parte das mulheres que trabalham em arqueologia de emergência, pelo menos a partir de certa idade, relacionado com a maternidade. Isto prende-se com a mobilidade que caracteriza estes trabalhos e que pode ser difícil de conciliar com os filhos. Ainda que algumas famílias se consigam adaptar a esta mobilidade, sobretudo se tiverem outro tipo de suporte, o certo é que muitas mulheres arqueólogas sentirão mais tarde ou mais cedo o peso desta dualidade entre a vida profissional e o seu papel como mães. Mas se, ao nível interno da profissão, possamos admitir que haja um certo equilíbrio entre o número de homens e mulheres, certo é que no contexto em que a Arqueologia empresarial se desenvolve a balança, aí sim, pesa ainda muito para o lado masculino. Estamos a falar do mundo da construção civil que, ainda que as coisas nos últimos anos tenham conhecido algumas alterações, é ainda muito um mundo de homens. Se se notam ainda desigualdades? Sim notam. Se ainda há sexismo? Sim há. As coisas estão diferentes, desde que comecei a minha vida profissional, mas ainda há um longo percurso a percorrer. Por exemplo, um homem que seja contratado para determinada função tem de, com o seu desempenho, provar que é capaz. A mulher na mesma situação tem de provar que mesmo sendo mulher é capaz. O uso do advérbio ‘mesmo’ enfatiza aqui o  preconceito, uma espécie de dúvida inerente que ainda vai persistindo relativamente à mulher que se propõe a realizar determinado tipo de trabalho. E num mundo de homens, como ainda de facto o é este, onde a Arqueologia empresarial se desenvolve, a sua condição de mulher está sempre subjacente ao seu julgamento como profissional. Generalizando, e salvaguardando as devidas e louváveis exceções que felizmente vão existindo, o percurso da mulher para conseguir o respeito e reconhecimento profissional é de facto mais longo que o dos homens.

Por onde passa o futuro da Archeocélis?

O futuro da Archeocélis anda a par do futuro do nosso próprio país. Precisamos de investimento em obra públicas e privadas, pois é aqui que a arqueologia preventiva e de emergência se desenvolve. Queremos contribuir para um futuro onde cada vez mais e melhor, o nosso património, enquanto memória do nosso passado, esteja vivo e reinventado no presente. E contribuir para que esta consciência cresça é também desempenhar um papel para que se desenvolva uma maior consciência de cidadania e de responsabilidade pelo que é um valor nosso, coletivo.

 

 

You may also like...