“Ser psicóloga em tempo de pandemia é um verdadeiro desafio”

 

Em entrevista à Revista Business Portugal, Alicia Peres, psicóloga, apresenta-nos o olhar mais profundo sobre a forma como a pandemia está a comprometer a saúde mental e o longo caminho a percorrer para que a sua importância seja reconhecida. Como a própria nos confidencia, “a pandemia acentuou algumas situações, trouxe recaídas e houve um especial agravamento nas Perturbações de Humor e nas Perturbações de Ansiedade.”

Alícia Peres, Psicóloga

Tendo em conta o cenário pandémico, como está a saúde mental dos portugueses? Sente que piorou?

Temos, em Portugal, algum trabalho de investigação a ser conduzido para aferir o impacto da pandemia na saúde mental da população portuguesa, mas ainda é cedo para podermos avançar com dados mais conclusivos sobre esta matéria. No contexto desta pandemia existe um conjunto de fatores socioeconómicos que agravam a saúde mental, como por exemplo: o desemprego, a precariedade laboral, a perda de rendimentos, a pobreza ou a exclusão social. Uma crise socioeconómica pode provocar ansiedade, depressão, diminuição do bem-estar percebido, aumento de stress.

Nas primeiras semanas da pandemia não senti um impacto significativo, mas depois, pouco a pouco, comecei a constatar um aumento na procura de consultas, sobretudo de utentes que estavam estabilizados e que por consequência da pandemia desorganizaram-se. Julgo que a pandemia acentuou algumas situações, trouxe recaídas e houve um especial agravamento nas Perturbações de Humor e nas Perturbações de Ansiedade.

Dado que trabalha com reclusos, como estão estes cidadãos, em particular, a lidar com tudo isto que está a acontecer? De que forma é que a Covid-19 os está a afetar?

Inicialmente, não considero que a pandemia os tenha afetando de forma significativa. Talvez por serem uma população, já por si, em condições de reclusão, a medida do confinamento, a título de exemplo, não foi sentida com grande impacto. No entanto, com o passar do tempo, a perceção de segurança foi sofrendo alterações. À semelhança de todas as outras instituições, os estabelecimentos prisionais tiveram de se adaptar a esta realidade e os reclusos vivenciaram essas mudanças com alguma desconfiança. Mesmo na sua liberdade limitada, sofreram e sofrem, também, com a pandemia. Seja através da inicial privação de visitas ou depois com a possibilidade de visitas, mas atrás de uma barreira em acrílico, impossibilitando o toque humano; a angústia de saberem que os seus familiares e amigos estariam mais expostos que eles próprios; a consciência de que a dificuldade de distanciamento físico em ambiente prisional possa abrir portas para a possibilidade de contaminação e rapidez na transmissão. Por outro lado, muitos viram antecipada a possibilidade de entrar em contacto com o exterior e contrariamente ao que que possa pensar, isso nem sempre é um fator de proteção para o indivíduo pois muitos deles não estavam preparados para tal.

A nível institucional foi desenvolvida e implementada, através de uma comunicação exemplar, uma série de medidas para os securizar e minimizar os potenciais danos da pandemia, tanto do ponto de vista da saúde física como mental.

E a Alícia Peres… como lidou e está a lidar com a pandemia? De que forma repensou e adaptou o serviço que presta à população?

Pessoalmente, tenho procurado manter um cuidado constante tanto com a minha saúde física como mental. Reinventei uma série de rotinas. Felizmente, os meios de comunicação à distância permitiram-me manter mais próximos todos aqueles que são significativos para mim e penso que me adaptei bem a esta nova realidade. Profissionalmente, ser psicóloga em tempo de pandemia é um verdadeiro desafio pois estamos todos a viver a mesma crise. Paralelamente a um autocuidado acrescido senti a necessidade de adaptar a forma de prestar os meus serviços.

Esta pandemia veio obrigar a uma revolução na operacionalização das consultas. Tive, por exemplo, de começar a dar consultas online, o que sempre evitei fazer, mesmo tendo tido preparação específica em Aconselhamento Online, na faculdade. No entanto, o balanço que faço das consultas online é francamente positivo. A maioria dos meus pacientes revelou sentir-se muito confortável em ter sessões online pois estavam no seu espaço, que é sempre mais familiar do que o consultório, evitaram deslocações e, sentiram-se mais seguros de alguma forma. Nas sessões presenciais houve um cuidado acrescido em realizar as marcações de modo a evitar o cruzamento entre pessoas e passou-se a higienizar os espaços após cada presença, assim como a disponibilizar álcool-gel logo à entrada e máscaras. Dou consultas há pouco mais de 10 anos e a esmagadora maioria das pessoas que me procura pertence ao distrito de Santarém. Com as consultas online passei a ter, pela primeira vez, a possibilidade de realizar consultas com pessoas de vários pontos do país e até mesmo do Brasil! As sessões decorreram com uma facilidade surpreendente. A pandemia veio alterar a forma de trabalhar em Portugal, um país que, ainda que tenha contemplada a forma de teletrabalho na sua legislação laboral, não tinha até então grande expressão. Afinal é possível trabalhar e com muita qualidade a partir de casa. Reduzimos custos, sentimo-nos mais confortáveis e podemos chegar a mais pessoas. Deixo a nota de que esta é a minha perceção pessoal, mas tenho conhecimento de muitas situações em que a vivência do teletrabalho não é assim tão positiva.

Acredita que as mulheres têm alguma característica intrínseca que acaba por ser uma mais-valia em situações adversas, como a que vivemos? De que forma pode a mulher acrescentar valor e inspirar o mundo empresarial a superar os mais diversos desafios?

Essa questão faz-me evocar o estereótipo da mulher enquanto cuidadora, mas essa é uma ideia que devemos procurar desmistificar. Tanto homens como mulheres podem, e têm, em si mesmos, a capacidade de lidar com a adversidade, possuem a competência da resiliência. Adaptamo-nos às situações que afigurem essa necessidade.  Esta crise de saúde pública atinge todas as pessoas, mas no mundo empresarial a quem está em posição de liderar, acresce a necessidade de tomar decisões num contexto com um elevado nível de incerteza. Os líderes de hoje têm de lidar com enormes quantidades de informação e, contrainformação, com um elevado nível de incerteza e imprevisibilidade e têm posteriormente de identificar potenciais focos de atuação e implementar respostas rápidas. Fora todos os desafios já habituais, esta crise está a trazer e trará ainda mais a necessidade de os líderes construírem locais de trabalho saudáveis.

Quem está na liderança empresarial deve estar atento aos outros, mas antes disso, a si mesmos. Durante uma situação de crise, acumula-se mais facilmente um elevado nível de fadiga e stress que poderá diminuir a capacidade de processar e filtrar informação e, nesse sentido, deixo o meu conselho para o autocuidado. É fundamental que os líderes, sejam os líderes políticos, os líderes empresariais ou os líderes da nossa própria vida (que somos nós), cuidem de si, de modo a poderem também cuidar dos outros. É fundamental, neste momento, estar disponível para reconhecer sinais de fadiga e respeitar a necessidade de descanso, que não passa só pelo sono, mas, por exemplo, depois do almoço, ligar a alguém de quem gosta ou dar uma pequena caminhada antes de videoconferências difíceis.

Nos dias correntes, é inevitável falar da saúde mental. Apesar de esta temática estar a receber mais atenção e ser reconhecida a sua importância, está a ser feito o trabalho devido? Que conselhos quer deixar aos nossos leitores?

Nos dias que correm torna-se inevitável falar de saúde mental. No entanto, considero que ainda existe um longo caminho a percorrer até que a sua importância seja devidamente reconhecida. Ainda existem muitos preconceitos em torno do conceito de doença mental e falta uma rede de serviços de apoio à saúde mental efetivamente disponível e acessível para todos. Ainda existe muito trabalho a realizar e gostaria que chegássemos a um momento em que, por exemplo, existam técnicos na área da saúde mental, em número suficiente, nos serviços públicos, para fazer face a todas as necessidades. Muitas vezes o utente chega ao profissional de saúde mental como se tivesse chegado ao fim da linha, só depois de esgotar todas as outras possibilidades. Aposta-se pouco na prevenção e existem, por vezes, poucos meios para atuar condignamente na área da intervenção. Apesar disso, temos de reconhecer os esforços da Ordem dos Psicólogos Portugueses, que apesar de ser uma ordem relativamente jovem, tem tentado divulgar a importância da saúde mental, oferecido literacia na saúde e feito um esforço concertado para promover a integração de mais técnicos. Claro que tudo leva o seu tempo, mas o caminho faz-se caminhando.

A nível de conselhos… Já todos sabemos que precisamos usar máscara, higienizar as mãos, manter o distanciamento físico, mas, sem um fim à vista para a pandemia, é compreensível que nos sintamos menos motivados para aderir a todos os meios que são recomendados. Vivemos o que se chama de “fadiga da pandemia”. Precisamos manter estes comportamentos de forma diária até se tornarem naturais para nós. Só dessa forma poder-se-ão tornar um hábito e não lhes atribuirmos a ideia de estarmos em esforço. O ser humano adapta-se a tudo e consegue adaptar-se a esta realidade também que, ainda que não seja definitiva, não sabemos até quando durará. Estamos há demasiado tempo em permanente vigilância e o cansaço acumulado que isto acarreta, pode levar-nos a reduzir a perceção de risco associada ao COVID-19 e por sua vez, levar a baixar a guarda, mas precisamos respeitar o novo paradigma. Por isso, a nível de conselhos, acima de tudo, devemos ter empatia connosco mesmos. Perceber e aceitar que nem sempre estamos completamente comprometidos com estas mudanças que ocorreram nas nossas vidas, mas que é uma situação que nos transcende e podemos apenas tentar controlar as suas repercussões em nós. Devemos, também, continuar a fazer a nossa vida e manter e criar objetivos e planos para o pós-pandemia. Até esse momento chegar devemos manter rotinas positivas, reforçar os cuidados com a alimentação e exercício físico, cuidar do nosso sono, recolher apenas informação fidedigna, com fundamento científico e de modo geral procurar sensações de segurança, de autoeficácia e de esperança. Acima de tudo, nunca esquecer que a superação faz parte da nossa natureza e que não são as crises que mudam o mundo, mas sobretudo a nossa reação a elas.

 

__________

Consultório de Psicologia Alícia Peres

Tel.: 910 700 936

You may also like...